TANGO
Fico envolvida no remorso
Quando me ponho, lentamente, a recordar
O que foi a minha vida —
Contigo,
Naquele bar...Dois anos! Dois pesadelos
Que me engelharam as carnes
E envelheceram os cabelos.Ao que eu desci na tua companhia!
— Vocabulário, gestos, e o que eu fiz?
Queria ver-te bem, e para isso,
Tornei-me tudo... e até fui meretriz.
Nas mansardas do crime e do pecado
Desafiando a sífilis e a morte
Dei-me nua a dançar!...E tudo para quê? Pra nada te faltar.
Ó tascas sonolentas, marinheiros,
Risos de escárnios, chufas, bofetadas,
Apitos, sangue, um grande cais, e a Lua,
Pálida, longe, a derramar torpor...Triste, em surdina, uma guitarra fala!...
Visualidade trágica do amor.
António Botto
Do livro::"Pequenas canções de cabaré", in As canções de António Botto, prefácil de Fernando Pessoa, 15ª ed., Edições Ática, Lisboa/Portugal, 1975