Soneto 52

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Soneto 82

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa! tivera algum merecimento
Se um raio da Razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei! Oh! se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

                                                                               Bocage

Do livro: Sonetos Manuel du Bocage - Texto integral, Martin Claret, 2003, SP

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