DA RECUSA DAS UTOPIAS

— Ah
meu sobrevivente das esperanças!
Infelizmente, também não.

Lembras daquele profeta
                      sangrando até às memórias
da tua lista de absurdos?

Ele tentou apenaas construir o natural:
uma vida humana para todos os humanos.

Mas lutava contra monstros
contra os dois monstros mais cruéis da humana natureza:
dinheiro e arma.

Eles venceram.
Não porque fossem os melhores, mas porque eram os mais rudes.

E enterraram a esperança setenta horas depois.

E continua o festival de privação e privilégio.

E continua a dança de mosaicos inajustáveis.

Eles chegam ao governo para servir ao país,
mas se servem do país para continuar no governo
revesando-se
locupletando-se
                          entre si.

Antes são só promessas
                          feitas por quem não há de cumpri-las,
                          aceitas por quem não pode julgá-las.
Depois
só sacrifícios
                          solicitados por quem não os faz
                          feitos por quem não os solicita.

No lugar do humanismo da ideologia
o antropofagismo do poder.

E no lugar do  interesse   da nação
                                      do estado
                                    do povo
o  interesse   da classe
                    do grupelho
                   da parentalha.

(E pois porque tais chaves não são de todos
é que chegamos ao ponto a que chegamos.) (*)

                                                                                Pedro Lyra

Do livro: "Errância - uma alegoria trans-histórica", Tempo Brasileiro, 1996, RJ

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(*) N.E.: O livro é constituído de um longo diálogo e Da recusa das Utopias é uma espécie de resposta a outro personagem que termina sua fala anterior (Das Utopias) afirmando que um mundo justo lhe "parece útil/ (...) como uma chave." E a seguir indaga: "E essas chaves/ não são de todos/?????????????????????????". O começo e o final desta resposta poética de Lyra se reportam especificamente a tal pergunta.

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