A LUVA DA DUQUESA

A Senhora Duquesa, uma beleza antiga
De bastão de faiança e cabelo empoado,
Certo dia, ao descer do seu estufim doirado,
Sentiu desapertar-se o fecho de uma liga.

Corou, quis apertá-la (ao que o pudor obriga!)
Mas voltou-se, olhou... Tinha o capelão ao lado.
Mais um passo, e perdeu-se o laço desatado,
E rebentou na corte uma tremenda intriga.

Fizeram-se pregões. Marqueses, condes, tudo
Procurava, roçando os calções de veludo
Por baixo dos sofás, de joelhos pelo chão...

E quando já ninguém supunha — que surpreza!
Foi-se encontrar por fim a liga da Duquesa
No livro de orações do padre capelão.

A LUVA

Quatro meses depois dessa hora dolorida,
voltei, já resignado e quase sem rancor, 
ao ninho onde viveu aquele imenso amor
que foi o grande amor de toda a minha vida.

Compreendi então — quanta imagem querida!
-que pode haver encanto e doçura na dor:
um perfume — era o teu — palpitava em redor,
dormia num sofá uma luva esquecida.

Uma luva e um perfume: é o que resta de ti,
dos beijos que te dei, do inferno que sofri,
do teu mentido amor de juras desleais.

Que fui eu, afinal, na tua vida intensa?
o perfume que voa e em que ninguém mais pensa,
a luva que se deixa e não se calça mais...

                                               Julio Dantas

Do livro: "Sonetos", Portugal-Brasil, Limitada, Lisboa, 4ª ed., 12º milhar, [1933]

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