MURALHA

Agressiva e fria
a virine cintila
safiras na moldura
da injusta platina
e do impuro ouro.
Até que o punho
do homem com fome
em riste esmurra.
O vidro sendo vidro
se esfrangalha.
O sangue sendo sangue
escorre e coalha.
Mas a muralha, vejam!
continua intacta.

Do livro: Antologia Pessoal, Thesaurus, 2008, Brasília/DF

 

DAS COISAS

Algumas são perecíveis.
As comestíveis, por exemplo,
tão assimiláveis e semelhantes
nas urgências e desgastes do corpo
tão irmãs no destino decadente
mergulham conosco na voragem.

Outras são descartáveis
e se afastam de nós cada vez mais
rejeitadas por nossos gestos
rebaixadas a lixo e ainda assim
recicláveis com direito pleno
à metamorfose e reencarnação.

Grande parte das coisas
é de assombrosa resistência
matéria incólume pelas eras
muralhas e pirâmides de pedra,
pontes, arcos, e torres de ferro,
coroas de ouro e diamante.

Efêmeros seres em trânsito,
devemos conviver com presenças
tão duradouras que até diríamos
participantes da eternidade.
Destas mantemos distância
devido às incompatíveis esferas.

Abro o guarda-roupa e encontro
os casacos com que meu filho
enfrentou a neve de Chicago
e caminhou ao sol da Califórnia
a camisa de um ido Carnaval.
Restos de seu rastro no mundo.

Não fosse a vida humana
assim breve, impermanente
poderia vesti-los a qualquer instante
perfeitos, embora pendurados
bem mais de uma dezena de anos
nos ombros fantasmas dos cabides.

Como disse um amigo às vésperas
de seu embarque definitivo:
o mundo só se acaba pra quem morre.
Daí a sobrevivência das coisas.
Apesar da aparência precária
de mudez e paralisia, resistem.

Longo é o circuito de tantas coisas
Pequenas enquanto o tempo nos destrona
Derrubando-nos ao rés-do-chão.

                                Astrid Cabral

Do livro: 50 poemas escolhidos pelo autor, Edições Galo Branco, 2008, RJ

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