PUNHAL ASIÁTICO

(UMA PÁGINA DO DIÁRIO DE UM LOUCO)

Não sei por que dantesco desvario
Eriçava-me todo em volúpia e terror
Ante aquele punhal, que era o orgulho sombrio
Daquele velho colecionador!

Cintilante punhal de feitura bizarra,
Tendo estranha inscrição na folha aguda e forte,
Recordada à feição ferina de uma garra
Em tateios de morte!

Dançava no seu cabo de ébano labrado
Com embutidos de âmbar e marfim,
Um pesadelo de almas em pecado,
Na epilepsia do fim...

E por entre essa turba atormentada,
Que se estorcia em contorções cruéis,
Longas serpentes de olhos de granada
Desenrolavam seus anéis.

Tinha aquele punhal precioso e flexível
Um nefasto poder, difícil de explicar,
Que acendia em meu sangue um desejo incoercível,
Que eu nunca tive, de matar!

Só de vê-lo sentia uma volúpia amarga,
E sem saber porque, num gesto maquinal,
A minha mão nervosa e larga
Apertava com febre o punho do punhal!

Então, brandindo o fero coruscante,
Meu braço, como o braço do assassino,
Apunhalava, a esmo, o ar circundante,
Ferindo a própria sombra em desatino.

Um dia — quando e como, é que não sei,
Por mais que me interrogue, acabado de dor, —
Despertei nesta cela. E dizem que matei
Aquele velho colecionador!...

                                 ***

Dentro de cada ser, à sombra da alma,
Dirigindo-lhe os passos e as ações,
O crime adeja, à espreita da hora incalma
Dos desvarios e alucinações.

E quando soar, em doze badaladas,
A meia-noite da destinação,
Hpa de ficar com as mãos ensanguentadas
Quem tiver um punhal ao alcance da mão.

                                                      Theoderick de Almeida

Do livro: "Ouro, incenso e mirra", Oficinas Gráficas Guido & Cia, 1931, RJ


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