SARCÓFAGO ANTIGO

Aqui, no verde ingresso de um bosque de mirtos e louros,
Entre roseiras bravas e agrestes margaridas,

granítico, o sarcófago antigo descansa. Rescende
cingindo-o a madressilva, que as mudas campainhas

em flor agita ao vento. Com laços tenazes e dúcteis
a hera fiel se enrosca, perpétua, à sepultura,

mas lhe respeita as linhas severas, os finos relevos,
e os emoldura apenas em harmoniosos curvas.

Não deturpou a idade seus nobres contornos. A clava
de Bárbaro, com raiva sinistra e rumor surdo,

não a investiu. Acaso, no fundo das selvas Albanas,
num antro sibilino, numa deserta gruta

sagrada, no horto obscuro de um vilico, abrigo sereno
por séculos a fio lhe dera a sorte. Agora,


entre a folhagem pétrea, de pomos e de uvas pesada,
que a circunda, uma cena de místico prestígio

revive . Inda os Centauros, com os Lápitas rudes lutando,
rolam, de olhos em chamas, na mesma ardente fúria

frenéticos os braços, e tesos os fortes jarretes,
e túmidos os peitos felpudos, e eriçados

a um tempo eqüinos pêlos e comas humanas. Já voam
dardos; o sangue, a jorros, vai já correr. Mas surge

na confusão da pugna, robusto, soberbo, sublime,
Hércules - vulto enorme! Com sua crespa juba

as têmporas lhe cinge leonina cabeça; e dos ombros
pende-lhe, manto tétrico, o despojo do monstro.

Ele, com o gesto apenas, lhes doma as horríficas iras.
Cessa o tumulto. Param, de terror fulminadas...

Ignota é a mão de artista, que o grupo guerreiro na pedra
em trágicas posturas criou e uniu. Ignoto

és tu que ali dormiste teu último sono ai! eterno
o crias - sono eterno... Mas nada existe eterno

no mundo; nem um simples jazigo. Um capricho do vento
varreu-te as cinzas, todas. E nem te resta o nome.

Quem eras tu, Romano de estirpe gloriosa, Tribuno
ou Cônsul, coroado de grama ou de carvalho?

Herói antigo, ou fino letrado da Corte e do Fórum?
Onde teus Manes pousam, e teus divinos Lares?

Se subo, entanto, à beira do velho jazigo, se estendo
a vista, além dos louros e mirtos viridentes,

além do vale cavo, sonoro de Arícia, e da imensa
Campanha árida e triste, Roma diviso ao longe...

Mas não; quem sabe em Roma que um dia viveste? Que ruína
fala de ti? Em que alma pela lembrança reinas?

Entanto, indiferentes, chilreiam estivas cigarras
aqui, com voz estrídua, em árvores musgosas.

Pássaros da floresta vizinha, pardais, pintassilgos,
e pombas de plumagem dócil, indiferentes,

os lépidos pesinhos no grande sarcófago pousam,
e bebem a onda clara... que a sepultura ilustre

hoje é, Patrício esplêndido, uma urna de rústica fonte,
que as águas níveas colhe dentre as mamóreas fauces

de um tigre... E quando as tintas purpúreas do ocaso colorem
no belicoso campo Lápitas e Centauros,

eu quando a branca Lua na fonte se espelha em silêncio,
gárrulas raparigas seus cântaros apóiam

nos ângulos lavrados, sorrindo, cantando, pensando...
Mas ai! não em ti pensam... pensam nos seus amores...

                    Magalhães de Azeredo

Do livro: Odes e elegias, 1904
Fonte: Academia Brasileira de Letras

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