Aqui ainda podemos esquecer-nos
aqui ainda podemos fechar os olhos e sonhar
aqui ainda podemos ignorar voluntàriamente
o dragão pela noite
Aqui ainda podemos fingir de homens
aqui ainda podemos sorrir como se nada fosse
aqui ainda podemos jogar obcessivamente o xadrez
Aqui ainda podemos ter pequenas ambições
aqui ainda podemos ser pequenos em tudo
aqui ainda podemos cruzar inteligenemente os braços
Aqui ainda podemos estar mortos e ler o jornal todos os dias
aqui ainda podemos responder a anúncios
aqui ainda podemos ter um tio nas Américas
Aqui ainda podemos ter um rádio portátil
aqui ainda podemos gostar de futebol
aqui ainda podemos ter uma amante oculta
Aqui ainda podemos ir cedo para casa
aqui ainda podemos estar no café com os amigos
aqui ainda podemos ter um jeito marítimo
Aqui ainda podemos
em silêncio esperar
Entanto, enquanto dói,
ouçamos folhetins (de rádio ou doutros):
(cavalgam pelo écran fotogénicos potros
e a rapariga beija o seu cow-boy).
A solidão é chaga que rói, rói?
Não pode a vida suportar o mito?
(Devora as unhas o espectador aflito,
não vá morrer de tiro ou tédio o herói).
E há quem diga que o diabo foi
o responsável desta história toda.
(Nem fomos convidados para a boda
— leia-se FIM — da moça e do cow-boy).