Calendário

        Janeiro

Verão

E esta cidade como um sáurio,
Como um réptil,
Emergindo das águas

Verão...

E esta cidade
Como um pássaro
Renascendo das brasas

Verão...

E esta cidade como um signo
Astrolábio ou mandala,

Esta cidade
Como um dado
Atirado ao acaso

De males nunca dantes
Confessados.
 
 

        Fevereiro

O sol divide o mundo
Em dois luzeiros,

Metade ainda é febre,
A outra metade
É fogo devorando
Seus altares.

Arcano é o tempo,
Anil sem asas,
No azul fuzilante
Das mortalhas.

Leão coroado, o sol,
Com suas garras,
Separa devagar
Vagos despojos.

Púrpura é o limite,
Som de prata lavada.

Ao cintilar dos clarins
O dia explode
E uma estrela de cinzas
Desenha-se na cara.
 

        Março

    ... e estes marços doendo
como pedras nos rins,
charadas que n]ao invento
e nem sei de memória
se há memória
além de um domingo de março
azul, perfeito.
todas as areias rolaram sobre
de todas as possíveis clepsidras
só o olho-farol, olho brilhante
antigo, a me guiar nas trevas
do regresso. não haverá,
não haverá, porto, viajante,
nenhuma Ítaca te espera,
nenhuma Colchida, nem mesmo os arrecifes
no cais de tua infância.
apenas a morte suave de olhos tristes
tão rápida e indolor, tão limpa guilhotina.

... e essas tardes de março
viageiras. sei o peso da ausência. sei a dor
das lembranças tatuadas
na carne, coladas e desfolhadas
como pele queimada que se arranca.

nenhuma presença é mais real
que a falta, corpo de solidão
deslizando entre móveis, marfins,
folhas soltas de um livro,
marca de prata, desenhos no tapete,
cavalos, leão de pedra, lembranças
que se acendem em faróis iluminando
o outro lado do abismo,
o precipício, o vazio, onde tudo se acaba.
 

        Abril

Escrevo de memória.
A infância é um bolo
Na garganta
E a dor de dividir-se
nos espelhos.

Que foi feito de mim,
Dquela estória
Que eu contei um dia
E que perdi?

Escrevo sempre à noite;
Pela manhã apago
E recomeço.

É tão difícil viver,
É tão açoite
O vento nas vidraças!

É abril e chove
E a terra morta
Onde o lilás floresce
É minha pátria agora,
Meu destino. Ínsula.
 
 

        Maio

Agora que se foi
Sem medo e sem disfarce
Descola-se do álbum
O último retrato.

Vestido de seda verde,
As mãos tão claras,
Um castiçal de prata
Sobre a mesa e hortências
Desbotando de rosa a azul lavado.

Rosa mística de maio,
Luz dançante
Nos dedos de minha mãe.

O espírito de Deus
Pairando sobre as águas
 
 

        Junho

Noite fria, neblina...
Nos corpos acesos
O esplendor das fogueiras.

Adorávamos o fogo,
Tão limpos e cruéis,
Tão santos e assassinos.

Pele de ovelha nos ombros,
Na boca,
Um gosto de salitre
E asas verdes.

Ah! os cátaros.

Um tronco de jaqueira,
As espigas de milho,
Arco-íris de papel
Na memória intocada.

Ah! os cátaros.

Do outro lado do abismo
Outros fogos acesos
E os jogos, as adivinhas,
As sortes, os presságios...

À meia-noite em ponto
Nos olhávamos no espelho:
Era tudo tão confuso,
Tão lampejos de prata, tão
Relâmpagos de faca.

A dançarina louca
Despia-se de suas pétalas,
Ah! os cátaros, os cátaros,
O amor tem dessas fúrias,
Dessas fomes de fera
E cabeças cortadas.

Ah! os cátaros!
 
 

        Julho

                Para Cecéu, com a devida licença

Era no mês de julho.
Nenhuma pugna travada,
Nenhum grito.

Só a brisa forasteira
No verde leque
Das gentis palmeiras...

Saia de xadrez cinza-azulado,
Suéter cor-de-rosa.
Depois da praia, o cinema.
Era domingo. Secretamente,
Elizabeth Taylor amava
James Dean.

E o anjo da morte, pálido,
Não cosia
Nenhuma mortalha ainda,
Nenhum pedaço roto do infinito
Dos sonhos que sonhávamos,
Tão bonitos.
 

        Agosto

Mês de agosto,
Desgosto.

Era de cântaros
(Encântaros)
O barulho da chuva
Nos telhados.

A casa não tinha
Sete torres
Mas o amor era tanto
Que matava.

Mês de agosto,
— Feliz aniversário.

Só o gosto,
O explícito, o cruel,
O fino gosto,
De estender toalhas
Nos altares.
 

        Setembro

Subitamente
Te invoco, minha Baby
Babylonia,
Neste setembro secreto,
Sem flores, sem
Asas de borboleta
E raízes brotando.

Teu nome Baby, longe,
Longe, longe,
Com a síntese perfeita,
Gosto de mel e laranjas.

Teu nome Baby, Babylônia
A perversa, a pervertida,
ilusão de contar
A derradeira estória.

Todo o tempo carregando
Os meus jardins de sonho
E o doce sabor
Dos inúteis mistérios.

Nada mais resta agora.
Nem a lembrança do rio
Correndo em minhas pernas
Nem a sombra das muralhas
Onde ganiam leoas.

Na terra devastada
Entre o sono e a vigília,
Contemplo a sombra esguia
Que se alonga como lança.

Enquanto o sol se dita
Atrás dos zigurates.
 
 

        Outubro

Caroço de tempestades,
Nó de cobras ardentes,
Este é um mês de huvas cálidas
E de ventos.

Subversivo ao calendário,
Fruto amargo
Na colheita ancestral.

É sempre outono
Em outubro,
É sempre vento.

Nenhuma cintilação,
Somente o escuro

E no escuro esta sombra,
Graciosa e febril,
Dançando à luz dos raios

— o canto áspero
E o pescoço
Carregado de contas.

É sempre guerra
Em outubro,
Sempre vermelho e azul.

Sempre pendões na ponta
Das estacas
Desse tempo minado
A que chamamos destino.
 
 

        Novembro

Agora Escorpião
Inicia a jornada.

Plutão na sétima Casa
E Marte, tão guerreiro,
Tão belo e protegido
Com seu elmo,
Seus encantos de macho.

Signo tão cruel,
Sorte tão vária,
A descida aos Infernos
É somente o princípio,

Lembranças guardadas
Como amêndoas,
Num frasco.

Vermelho é a cor da estrela
Que reside meus atos
— Uma parte é o brilho,
Outra parte o veneno.

Centelhas de ouro puro,
A dor,
A lâmina sobre a pele

E um gosto de romãs
E flores de jacinto.
 
 

        Dezembro

Na mesa de Natal
Duas velas acesas,
Fina luz verberando
O amarelo dos pêssegos.

Era contada sempre
A mesma estória,
Na sombra verde sombra
Dos pinheiros.

Uma estrela de papel,
Entre tâmaras e purpurina,
Apontava o caminho
Aos magos tutelares.

No pátio um leão vermelho
Quebrava nozes com as patas.

                                                   Myriam Fraga

Do livro: "Feminina", (Prêmio Copene de Cultura e Arte), Fund. Casa de Jorge Amado, 1996, BA