A CHEIA

Junho o cais empinava que nem ventre prenhe.
Miúdas águas de chuva, poças, regos alagados
sumiam sob o aguã do rio embrenhando-se por
soleiras baixas num espreguiço de mar.
Lambendo chapechape beiras e batentes
o rio cobra raivosa ia mostrando os dentes.
Não mais praias, matos ou ribanceiras nuas.
A líquida rua dos flutuantes se fazia avenida:
luzes piscando trêmulas múltiplas no remelexo
das águas trilhadas de canoas bêbadas.
Pontes nasciam urgentes sobre as ruas de antes
Cuieiras viravam capoeiras para o frágil refúgio
de aves tamandarés.    Tanta água solta!
Tanta água solta havia de ser o choro
de Deus Nosso Senhor no céu!

                                             Astrid Cabral

Do livro: Visgo da terra, Edições Puxirum, 1986, Manaus/AM

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