Narciso e Narciso

Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira. 

Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
                 E se amam mentindo
                            no fingimento que é necessidade
                            e assim
                 mais verdadeiro que a verdade. 

Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
                       E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
                       se odiando. 

O espelho
                   embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
                         que o inferno de Narciso
                         é ver que o admiravam de mentira.

                                                         Ferreira Gullar

Do livro: Barulhos, Ed. José Olympio, 4ª ed., 1997, In: Toda poesia, Ed. José Olympio, 9ª ed., 2000
Enviado por Tatiana Magalhães

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