O mar lembra a morte.
O grande sineiro toca
o sino da montanha
tange nuvens
carneiros loucos
bois que mugem
ruminando o milho do mistério.
Ó tempo
timoneiro do
destino esconso
para onde me
levas
nessa nau entre os
vagalhões despedaçada?
A memória do mar
a memória da morte
nas flores de abril cruel.
A pobreza humana
nos chinelos furados
atrás da porta e as sereias
e o Maelstrom rugindo me chamam.
Numa bacia velha no quintal
a lua dentro
uma rã coaxa ao lado
um jumento e suas moscas.
O sonho bóia
a bacia é um
elmo guerreiro
o jumento é
Rocinante
a rã, Dulcinéia
del Trancoso.
William Shakespeare toma da bacia
que é uma coroa prateada
dourada
rútila de brilhantes
e nada
nem o quintal existe.
A glória é cingir nada.
O bruxo do Cosme Velho cingiu nada.
Atrelo o arado a um tigre
e continuo arando o meu campo.
O mar vai e vem na praia
e apaga as pegadas
descomunais
na areia delicada.
Estou pequeno
esculpindo palavras toscas num tronco seco.
Eu sou o que não partiu.
Miguel de Cervantes e William Shakespeare caminham
ao meu lado.
Eu
fincado no chão como uma estaca.
Se fosse na infância
iria florir o meu
bordão.
Sou um velho
já quebrei as pernas descuidadas
nas esquinas.
A ferrugem nas
juntas
é o meu
ouro.
A morte cose as minhas meias
junto ao fogão.
Nenhum fogo
as cinzas frias
e a morte a fiar a fiar
na roca que não pára.
William Shakespeare cose a minha mortalha
entre as brumas
os tronos
as escoriações.
Miguel de Cervantes segura as barras de ferro de uma cela imunda
e olha o horizonte.
Os dois olham o horizonte
eu olho o horizonte
e a morte.
O sol sangra no mar da morte.
José Carlos Mendes Brandão