à venda

                pós-onze

I

crianças miúdas soterradas
e seus pais desaparecidos
e suas casas sem portas e sem janelas
e sobreviventes sem nenhuma fagulha de esperança

lembranças de gente jaz
plantadas à boca da noite de onde vem o sol
pela manhã, rubis em leite nas manchetes de jornais

à venda
jazigos instantâneos nascidos de mísseis ou bombas
e robôs de carne e osso e explosivos
que acompanham controle remoto

baterias antiaéreas
e aviões invisíveis
e caça-humanos
e montanhas-labirintos

cartas sem remetentes, porque, sem perfume
estão abarrotadas de pó na contramão
e abridores descartáveis de envelopes
que acompanham kit astronauta

 

II

à venda
manuais de Hitler e de vietcongues
um velho Alcorão não mais soterrado
um porta-retratos sem barba
com o vidro quebrado e empoeirado
e uma ideologia e uma religião

cartas de amor presas na alfândega
e parentes e amigos sem notícias
que morreram de ansiedade e apreensão

à venda
um punhado de luz de sol
armazenado em vidros esverdeados
sem o selo do Inmetro

um punhado de raro silêncio
colhido em grutas subterrâneas
armazenado em caixas de papelão

e olhos que lacrimejam desesperança e dor
e mãos corajosas que empunham armas
agora ceifadas e cobertas de terra

um coração partido em cruz por depressão

 

III

grátis
orações de Marias de todo o mundo
remédios e alimentos e pedidos de paz
(distribuem-se sementes de perseverança)

uma mulher que não está à venda
corre em uma pentagonal
sua burca se desprende:
escondia:
                  a
                  face
                  da
                  desalegria
                  e
                  do
                  desespero

uma criança se ajoelha e pede paz

estrelas explodem no céu
e não são fogos de artifício

a noite caiu de repente

                                    Merivaldo Pinheiro

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