CALABAR - Um poema dramático
(Fragmento)


Calabar está
onde não está.
Mora na ferrugem
do canhão,
na alvorada dos galos
e na ferradura
dos cavalos,
no veneno das lacraias
e no branco das cambraias,
nos asilos onde os loucos
cantam ao cair da nooite.
Mora no dobrão de ouro
das botijas escondidas,
na cama dos amantes
e nas tigelas quebradas.
Mora na vela rota
do galeão
na pólvora do arcabuz
no pus do purulento
na vara do vereador
e no cone azul do vento.
Mora no mel das abelhas
e na grade das cadeias,
vive na farinha de água
e no pão dos pesadelos.
Está no toldo dos circos
e nas espinhas dos peixes,
entre os bichos das florestas
e a água fria das cisternas.
É o que sobra e o que falta
no sonho interminável
do povo quando não sonha.
Calabar é todo este ar
da pátria que respiramos.

(...)

Calabar não mora
na história escrita
de qualquer cartilha
que ensina o menino
a ser mentiroso
desde pequenino.
Que ensina o garoto
a crescer com medo
de abrir a boca.
Que ensina o silêncio
em lugar do grito,
aconselha o silêncio
em lugar do avanço,
garante que o covarde
é melhor que o bravo,
e em vez do trabalho
que transforma o mundo
ensina ao menino
o eterno descanso
e o eterno conchavo.
Que, em vez da luta,
ensina a rendição

(....)

Calabar mora no túmulo
secreto dos guerrilheiros.
Mora na cova escondida
dos que morreram querendo
mudar a ordem do mundo.
Seus restos esquartejados
estão dispersos na vala
dos desaparecidos
que, embora pertençam à morte,
ainda pertencem à vida,
vivos enterrados
enterrados vivos.
Calabar mora no sol
que ilumina a flor de açúcar.
Mora na chuva de vento
na luz cega do farol
ou no cajueiro florido
no caminho percorrido
pelo peregrino.
Calabar mora na terra
dos que não têm terra nenhuma.
E seu cavalo salta
a cerca de arame farpado
que divide o mundo.

                                   Lêdo Ivo

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