CALABAR

Oh! não vendeu-se, não! - Ele era escravo
Do jugo português. – Quis a vingança;
Abriu sua alma às ambições de um bravo
E em nova escravidão bebeu a esperança!
Combateu... pelejou... entre a batalha
Viu essas vidas que no pó se somem;
Enrolou-se da pátria na mortalha,
Ergueu-se – inda era um homem!

Calabar! Calabar! Foi a mentira
Que a maldição cuspiu em tua memória!
Amaste a liberdade; era uma lira
De loucos sonhos, de elevada glória!
Alma adejando neste Céu brilhante
– Sonhaste escravo reviver liberto;
Subiste ao largo espaço triunfante,
Voaste – era um deserto!

A quem traíste, herói? – Na vil poeira
Que juramento te prendia à fé?!
Escravo por escravo essa bandeira
Foi de um soldado lá – ficou de pé!...
Viu o sol entre as brumas do futuro – Ele que por si só nada podia;
Quis vingar-se também – no sonho escuro

Quis ter também seu dia!
O pulso roxo da fatal cadeia
Brandiu uma arma, pelejou também,
Viram-no erguido na refrega feia,
– Sombrio vulto que o valor sustém!
Respeitai-o – que amou a heroicidade!
Quis erguer-se também do raso chão!
Foi delírio talvez – a eternidade
Teve no coração!

Oh! que o Céu era lindo e o sol se erguia,
Como um incêndio nas brasílias terras;
Da cimeira da selva a voz surgia,
E o som dos ventos nas remotas serras!
Adormeceu... à noite em funda calma
Ouviu ao longe os ecos da floresta;
Bateu-lhe o coração – triste sua alma
Sorriu-se – era uma festa!

Homem – sentiu na carne desnudada
O açoite do algoz nodoar a honra,
E o sangue sobre a face envergonhada
Mudo escreveu o grito da desonra!
Era escravo! Deixai-o que combata;
Livre nunca ele foi – quer sê-lo agora,
Como o peixe no mar, a ave na mata,
Como no Céu a aurora!

Oh! deixai-o morrer – deste martírio!
Não alceis a calúnia ao grau da história!
Que fique a lusa mão em seu delírio
– Já que o corpo manchou, manchar a glória!
Respeitemos as cinzas do guerreiro
Que no pó sacudira a alteira fronte!
Quem sabe esse mistério segredeiro
Do sol lá no horizonte?!

Não se vendeu! Infâmia... era um escravo!
Sentiu o estigma vil, horrendo selo;
Pulsou-lhe o coração, viu que era um bravo;
Quis despertar do negro pesadelo!
Tronco sem folhas, triste e solitário,
Debalde o vento assoberbar tentou,
Das asas do tufão ao sopro vário
Estremeceu, tombou!

Paz ao sepulcro! Calabar morreu!
Sobre o topo da cruz fala a verdade!
Quis ser livre também – ele escolheu,
Entre duas prisões – quis ter vontade!
E a mão heróica que susteve a Holanda
A covardia entrega desarmada!
Vergonha eterna a Providência manda
À ingratidão manchada!

Morreu! Mas lá no marco derradeiro
O coração de amor bateu-lhe ainda!
Minha mãe! murmurou... era agoureiro
Esse queixume de uma dor infinda!
Morreu, o escravo se desfaz em pó...
Ferros lançai-lhe agora, se o podeis!
Vinde, tiranos – ele está bem só,
Ditai-lhe agora as leis!

São Paulo, 1850.
(Poesias, 1962.)
            
                  José Bonifácio de Andrade e Silva                        
   

Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/jose-bonifacio/calabar.php

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