Solo Noturno

Abro a porta da casa,
Escura,
O manto do sono recobre a vida
Que pulsa quente no movimento único
Da cena:
A troca de passos em pontas de pés,
Sussurros invadindo o silêncio sacralizado
Do lar que dorme.

Fecho a porta, deixo suspenso o mundo lá fora,
A chave na mão,
A fechadura em mim.

Caminho pelo corredor e não sei quem sou,
Estou aqui, final de século e milênio,
Carregando questões desde muito antes de Sócrates
E todas elas pulsam vermelhas, acorrentadas
Na sombra do teto sem lua:
Não saber é abrir-se a todas as possibilidades?
Ou trancafiar-se à inconsciência do existir?

Uma opressão avoluma-se e ferve meu corpo,
Então, abro a janela
E a noite sopra carícias em minha face tensa.
No correr do vidro que a mão liberta,
O mundo retorna à casa.

Lá fora, a vida trafega a rua,
Brilha nas luzes de bares e edifícios,
Vibra na mistura de vozes
Dos amantes e bêbados da madrugada
Vida que se prepara orvalhada,
Em vésperas de flores
que abrirão com a  manhã.
Vida, que freme nas telejanelas piscando azuladas,
Ecoa em violas, acordeons e atabaques
Dos últimos músicos andarilhos.
Lateja em abraços, viceja em beijos
E renasce de corpos ardentes e  entumecidos.

Saciada, devagar deslizo a janela de volta
E colo minha face rubra ao vidro gélido.
Agora aspiro o aroma da vida em mim,
As questões ficaram aprisionadas no corredor,
No minuto passado.

Me reencontro e me revivo no incenso de carícias sentidas,
Na essência do amor entrevisto em fresta,
Um dia,
Brindando em mim, infinito, a nobreza de ser,
De não precisar saber,
Calando perguntas e borbulhando em festa
O presente.

Agora, apenas sou e sinto.
Na janela recolho o espanto
E por dentro grito:
EXISTO!

Virgínia Schall

1º lugar no concurso de poesias da Academia Feminina de Letras (AFEMIL) de Minas Gerais, 2000

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