POEMA DA MESA DO REPÓRTER

                               Para Alves Pinheiro

É madrugada e o Rio sonha
e os lampiões só iluminam gatos nas calçadas
A noite foi fria e silenciosa
mas há incêndios e desabamentos na mesa do repórter
e retrado de vítimas, de atropelados
de soturnos criminosos que não escaparam
e da criança arrastada ao matagal

No clip dos casos apurados
de amor e morte
há sempre o rosto da mulher
que cortou os pulsos
e do marido que puxou o gatilho

Os envelopes vão-se abrindo com suas surpresas
seus boatos
os pedidos de nota social
e a calúnia sem assinatura
no papel que só se rasga depois de lido até o fim

E há os recortes de ontem
os jornais que saíram mais cedo
e a voz de uma mulher ao telefone que pergunta
se Antonio Almeida foi atropelado
se foi preso, ou se ainda há bares abertos
na cidade que não acordou

O repórter lê necrológios e vai decifrando a vida:
corre os olhos em páginas não impressas
escolhe títulos
bate à máquina uma folha
corta um papel, cola outro
olha o relógio no fundo da sala e espera
que a cidade amanheça
fazendo notícia

                                             Mauro Salles

Do livro "O Gesto", Massao Ohno Editor, 1993, SP

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