O GUARDADOR DE CARROS1
Sou um guardador de carros,
e eles são todos meus
no meu pensamento.
Durante as festas e espetáculos,
abandonados por seus donos,
só têm a mim,
o pastor deste rebanho.
Estão bem cuidados,
mas se uma ovelha negra
não dá gorjeta,
o meu cajado arranha.
2Um carro anda sem metafísica:
um pé no acelerador,
outro na emgreagem,
mão esquerda no volante,
mão direita na mudança.
E a cabeça não vai nele.
Vai sozinha
a quilômetros de distãncia.
3Nenhum carro é igual a outro,
mas os carros são feitos em série.
Só daqui de onde estou,
vejo quatro gols pretos
como monótonas rimas.
Mas não sou poeta.
Sou arrimo.
4Menino Jesus voltou à Terra
e eu lhe ensinei a guardar carros.
"Tá bem cuidado, tio" — ele me disse,
escondendo os pregos das mãos.
5"Olá, guardador de carros!"
São os ladrões se aproximando.
"Nunca guardei carros",
eu respondo.
"Estou aqui como os postes e as árvores.
Não vejo, não ouço, não penso.
Sem falar numa grande vantagem:
posso correr como o vento."Ricardo Silvestrin
Do livro O menos vendido, Nankin Editora, 2006, SP