BRECHAS DA INFÂNCIA
“Não despertem a criança que dorme sob remorsos de pelúcia”.
Paulo Bomfim
O tempo encarcerado em mim
derruba muros.
Abre-se uma brecha.
Espio.Lembranças jorram aos borbotões.
Em pleno dia de chuva,
abro o baú.Diante de mim pululam anjos
que adormecidos,
trazem em cada imagem um presente.Meu baú nada tem de Pandora,
a não ser a esperança de reencontrar
os quintais que brinquei.Ah! subir na goiabeira
e com pouco equilíbrio me deixar cair:
contrapeso destruidor de copos de leite.Escalar a taipa bem cuidada
que fazia fundos da nossa casa
e vislumbrar a rua estreita,
sem calçamento,
onde os poucos carros passavam sem pressa.Ao longe ouvia-se o gemer das carroças .
Caminhar descalça na estrada de barro
sentindo a vida fervilhar sob meus pés,
vigiar os jardins,
espiar as rosas,
desejosa de roubá-las
para dar à professora.
Brincar no rio,
mesmo com medo da água corrente.
Atravessar a ponte,
todos os dias,
jogar meus cadernos e minha sombrinha
para depois ganhar outros.
As sovas vinham antes dos novos.
Eis que surge a boneca de pano!
Seu nome era Jovita!
Roupas coloridas,
colares de vidro,
olhos grandes
e numa fração de segundos
a destruo para ver o que dentro tinha.
Páscoas ricas,
cascas de ovos enfeitados
com babados de plissês,
carinhas marotas pintadas às escondidas:
uma festa a caça aos ninhos.
A coleção de cacos de porcelana:
cada um mais precioso que o outro.
A viagem termina...
Guardo tudo,
com muito cuidado.
Meus olhos se fixam
na fumaça do tempo.
Retorno a meus afazeres.
Carências nas curvas desavisadas
atropelam lembranças ressurgidas
de um sono crepuscular.