Aquele homem

Sou aquele homem que não voltou,
que saiu de casa ao amanhecer
e se perdeu para sempre.

Sou aquele homem da fotografia na parede
da casa fechada por dentro.

Sou aquele homem que inventou a tarde,
mas não viu anoitecer.
Sou aquele homem que se perdeu sem saber.

Aquele que não soube nunca,
sou aquele que não soube.

Sou aquele homem que desapareceu,
aquele que acreditou,
e ao se ausentar de si mesmo
sentiu o vazio absoluto de todas as coisas.

Sou aquele homem que se foi
e quando pensou em voltar
não tinha mais tempo,
era tarde demais.

Sou aquele homem que se desfez
depois de enlouquecer
e enlouquecido
tentou refazer o seu destino

Sou aquele homem que engoliu
um rio
e se afogou adormecido.

Aquele que falou sozinho
diante do espelho
se vendo do avesso.

Sou aquele homem que falava com as pedras
palavras desesperadas
que saltavam da boca
como gafanhotos doentes.

Aquele homem que conversava com os santos
numa igreja sem portas
e que dizia silêncios
em sílabas de gesso.

Sou aquele homem
que enfiou um punhal no coração
como um poeta romântico do século 18.

Sou aquele homem quase lírico
que chamava os pássaros
para uma ceia de sementes.

Aquele homem que rezava
com os anjos expulsos do céu,
sem saber que eu estava
expulso de mim

Sou aquele homem que amou 30 mulheres
e matou-se por amor 29 vezes.

Sou aquele homem que ao jogar xadrez
fugiu com a Rainha
para um castelo medieval.

Aquele que diante de Deus
pediu para ser destruído,
mas como castigo deixou-me viver mais.

Sou aquele homem que amou
mulheres de porcelana,
com sexo de porcelana,
boca de porcelana,
beijo de porcelana,
língua de porcelana.

Sou aquele homem de porcelana
que se quebra como uma xícara
que cai da mesa.

Sou aquele homem que saiu para dar uma volta
e esqueceu de regressar.

                                                    Álvaro Alves de Faria


Fonte: Revista da Academia Brasileira

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