ESPELHO

Malvado espelho de quarto,
instantâneo retratista,
desculpa, mas estou farto
de ver pela tua vista.

Quando me submeto, espelho,
ao teu rigoroso crivo,
me obrigas a ver um velho
já mais morto do que vivo.

O que em ti mais abomino
é que, ao refletir sem calma,
finges não ver um menino
que se agita na minha alma.

Pois este menino urbano,
mesmo sem mais ter saúde,
vai chutar bola de pano,
vai jogar bola de gude.

Vai fugir de burro bravo,
vai namorar no terreiro.
De ninguém será escravo,
de todos será parceiro.

O moleque que há em mim
não sofreu qualquer mudança
inda esconde o boletim
como faz qualquer criança.

A inveja é teu desatino,
causa de toda loucura.
Sou homem mas sou menino,
tu és só vidro e moldura.

Maldito espelho, entendi
qual o teu ardil abstrato:
quando acreditar em ti
serei um velho, de fato.

                                 Solange Rech
             
         
    Do livro: De amor também se vive..., Blocos, 1999, RJ.

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