O POETA, A PENA E O FUZIL
 
Goiamério Felício C. dos Santos
 
 
 A poesia é um perde-ganha. E o poeta autêntico prefere perder até à morte para ganhar. (...) Se, portanto, quisermos falar do engajamento do poeta, digamos que é o homem que se engaja para perder
 A consciência culpada
A validade e a pertinência da literatura tem sido questionada, por pessoas de diferentes extratos sociais, cada uma justificando a seu modo, a necessidade e a utilidade dessa modalidade artística. Quer embalando suas considerações nos sugestivos invólucros das teorias literárias, ou mesmo movidos por razões ideológicas, buscando explicações no campo da sociologia, o fato é que a literatura acaba sendo, como sugere mestre Antonio Candido, uma "atividade sem sossego".
Tido por Platão como um mentiroso, um falseador da realidade, incapaz de verdadeiramente ser um educador da Grécia, certamente que na República imaginada pelo pupilo de Sócrates não haveria lugar para o poeta. Este exerce uma atividade perigosa e deve ser prescrito, censurado: (...) devemos começar por vigiar os autores de fábulas, e seleccionar as que forem boas, e proscrever as más. As que forem escolhidas, persudiaremos as amas e as mães a contá-las às crianças, e a moldar as suas almas por meio das fábulas, com muito mais cuidado do que os corpos com as mãos. Das que agora se contam, a maioria deve rejeitar-se. (Platão, A República III- 377-c) A situação de estar sempre na berlinda provoca um profundo mal-estar no praticante do grave delito de entregar-se ao devaneio e às inquietações com a linguagem. Contudo, há que se reconhecer que, até mesmo os receptores de textos literário podem não estar imunes a esse tipo de dilaceramento. Afinal, uma atividade tão inquietante e tão inquietadora como a literatura, até hoje é recebida com uma certa dose de desconfiança e má vontade.
Assim, a atividade literária será objeto de constantes justificativas, como que para aplacar o drama moral de se exercer uma atividade considerada tão burguesa e destituída de fins práticos. Por isso, "Não é raro ver escritores envergonhados do que fazem, como se estivessem praticando um ato reprovável ou desertando de função digna. Então, enxertam na sua obra um máximo de não literatura, sobrecarregam-na de moral ou política, de religião ou sociologia, pensando justificá-la deste modo, não apenas ante os tribunais da opinião pública, mas ante os tribunais da própria consciência" 1.
Esse drama moral vem atormentando toda uma plêiade de intelectuais. Suas consciências culpadas, contudo, obnubilam uma consciência maior, qual seja, a de que o compromisso maior do escritor deve ser com a escritura, barthesianamente falando. Esses intelectuais, muitos deles imbuídos de veleidades literárias são assaltados por, digamos assim, uma consciência culpada. A conseqüência acaba redundando em uma perda, um desvio de rota.
Os intelectuais participantes, entregues à ideologia politico-partidária, num balanço que geralmente fazem num certo momento de suas vidas, não é raro verem-se num beco sem saída. Ou seja, suas consciências culpadas encontram lenitivo por não terem se omitido da participação social, da luta. Isso a despeito da posição privilegiada que ocupam numa sociedade construída sob o império da desigualdade e da injustiça social. Mas como nada pode ser perfeito, eles quase sempre acabam sentindo as penas da frustração intelectual. Sentem, alguns tardiamente como projetos falhados, literariamente falando. A família foi bem amparada, a carreira profissional coroada de êxito, o prestígio assegurado. Contudo, com eles mesmos, dentro de suas consciências de criadores que poderiam ter sido e não foram, martela e martela uma dor atroz. Dor muitas vezes não confessada. Essa dor pode sofre um processo de agravamento quando o escritor falhado olha ao redor e constata: nada mudou. A realidade social que tanto busquei mudar continua aí, inalterada e traduzida em fome, miséria, desigualdade. Foi para que esse estado de coisas continuasse a  existir no futuro de meus filhos, no devir do meu país que eu dei a minha cota máxima de sacrifício enterrando o meu tão acalentado projeto literário?
As conseqüências podem ser as mais funestas possíveis. O quadro oferecido no painel dos intelectuais brasileiros pode ser tão vasto e variado quanto a flora amazonense. Não raro vicejam por aí intelectuais ranzinzas, alcóolatras inveterados, críticos severos. Enfim gente que não acredita em mais nada. Isso porque já acreditaram tanto no mundo quando deixaram de acreditar em si mesmos, literariamente falando. Alguns, porém, encontram um destino menos burguês, tornando-se falhados, rejeitados pela sociedade do tempo que viveram.
Antonio Candido, no ensaio "Os olhos, a barca e o espelho" 2, refere-se a um caso típico da literatura brasileira: Lima Barreto. Um Lima Barreto que, a despeito de considerar que "a literatura devia Ter alguns requisitos indispensáveis. Antes de mais nada, ser sincera, isto é, transmitir diretamente o sentimento e as idéias do escritor, da maneira mais clara e simples possível. Devia também dar destaque aos problemas humanos em geral e aos sociais em particular, focalizando os que são fermento de drama, desajustamento, incompreensão. Isto, porque no seu modo de entender ela em a missão de contribuir para libertar o homem e melhorar sua convivência 3. Mas o preço que Lima Barreto pagou, convenhamos, foi por demais elevado. Pagou com a própria liberdade. Pagou com a própria qualidade de vida, capengando sempre à margem da sociedade que o rejeitou, tachando-o de louco, para atirá-lo no hospício, no precipício da vida. Por seus ideais nacionalistas pagou Lima Barreto pagou com a própria sanidade. E mais, com o seu engajamento nas causas nacionais pensando assim modificar também o quadro social de sua época o autor de Os bruzundangas 4 pagou um preço que leitores especializados são implacáveis na cobrança, qual seja um lugar na literatura brasileira que efetivamente lhe cabia e que o hóspede do Pinel deixou de ocupar. Sem deixar de reconhecer a importância e o interesse que até hoje desperta o escritor Lima Barreto, essas leituras especializadas não hesita em apontar que "Esta concepção empenhada, quem sabe devida às circunstâncias da sua vida, nos leva a perguntar de que maneira as suas convicções e sentimentos se projetam na visão do homem e da sociedade, e em que medida afetam o teor da sua realização como escritor. Porque, se de um lado favoreceu nele a expressão escrita da personalidade, de outro pode Ter contribuído para atrapalhar a realização plena do ficcionista. Lima Barreto é um autor vivo e penetrante, uma inteligência voltada com lucidez para o desmascaremento da sociedade e a análise das próprias emoções, por meio de uma linguagem cheia de calor. Mas é um narrador menos bem realizado, sacudido entre altos e baixos, freqüentemente incapaz de transformar o sentimento e a idéia em algo propriamente criativo" 5.
E aqui é necessário fazer uma ressalva. É verdade que essas leituras não estão ao alcance e interesse do público chamado leigo, o leitor que pode se dar ao luxo de ser tão somente um amante das letras, não tendo compromisso acadêmico-profissional com a literatura. São leituras ou estudos universitários, analíticos, efetuados dentro dos cursos de pós-graduação em letras. Esses leitores "privilegiados" evidentemente que não deixam de reconhecer o relativo mérito literário de Lima Barreto, muito menos o seu destacado papel de enunciar nas páginas que escreveu um projeto de nacionalidade brasileira. É pois, recorrendo a escritos como os de Lima Barreto que podemos compreender a complexidade de se estabelecer por aqui uma nação soberana em suas idéias e independente no que se refere ao fator econômico
Pois esses leitores especializados são implacáveis também com o poeta que é tido pelo grande público como o maior da literatura brasileira. Evidente que eles não deixam de também reconhecer os méritos literários de Carlos Drummond de Andrade. Mas reconhecendo também como válida a concepção sartreana de que "A poesia é um perde-ganha. E o poeta autêntico prefere perder até à morte para ganhar. (...) Se, portanto, quisermos falar do engajamento do poeta, digamos que é o homem que se engaja para perder" 6  o engajamento social do poeta de Rosa do povo pode ser visto por alguns como fator de perda poética. "Drummond opta pelo ‘risco’, mas com a certeza máxima de quem sabe que ‘A poesia (...)/elide sujeito e objeto’, é (...)forma definitiva e concentrada/no espaço’, e, ao mesmo tempo acredita que ,’com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas’, poderá ajudar a destruir o ‘mundo capitalista’. Numa hesitação constante entre forma e comunicação, entre fechamento e abertura do discurso, ou - usarmos a equação sartreana - para ‘palavra-coisa’ e ‘palavra-signo’" 7. Vemos assim que, a exemplo de tantos outros, Carlos Drummond de Andrade assume a ousadia de orientar a sua linguagem poética para a comunicação e a participação social. Esse risco está mais aparente em A rosa do povo, onde mais fortemente o poeta procurou construir uma nova possibilidade de elaboração poética ao tentar dizer o mundo em poesia ao mesmo tempo em que procurou também elevar a voz para transformar esse mundo.
Mas que intelectual, que criador, que poeta terceiromundista pode afinal exercer o seu ofício de praticante das belas letras sem o drama de consciência aludido por Antonio Candido? Comumente dizem que o intelectual tem como trincheira a sua escrivaninha, a sua biblioteca, a sua sinecura em alguma repartição pública, cooptado que acaba sendo pelo Estado que o alimenta vigiando a sua palavra. Talvez tenha sido essa a contradição que atormentou CDA. Consciente de sua fragilidade física, de sua pouca coragem para participar mais ativa e ostensivamente da derrubada do regime que cerceava as liberdades, o poeta itabirano preferiu não correr risco de integridade física. Talvez tenha preferido, sim, correr um risco que poderíamos dizer: o compromisso com o poético tão cobrado pela crítica especializada. O compromisso de engajar-se na linguagem. De elevar a expressão poética de seu tempo ao máximo, explorando toda potencialidade que a língua natural oferece. Revigorar a palavra, retirando-a do seu estado de letargia e de denotação.
 
Às armas e às letras

Há porém uma contra-corrente que não compartimentaliza tão radicalmente o estético e o social na obra de arte. Para essa tendência, a literatura e a arte não têm a função de refletir passivamente a vida e a sociedade. Elas fazem e devem fazer intervenção no espaço social em que está imiscuída. Ë preciso não confundir, portanto, a significação social da obra de arte com a sua significação artística. A arte é impensável sem o seu fundamento social, mas esse fundamento não é a causa da qualidade da obra de arte, como também não é o limite de sua significação humana. As estruturas sociais e as estruturas artísticas são paralelas, e é este fato que permite à Arte ser a crítica da vidas: a autoconsciência da humanidade" 8. Nesse sentido, fazer literatura significa mais que explorar a língua na busca de construção de uma nova linguagem. Fazer literatura, assim, significa um duplo compromisso: buscar o desnudamento do mundo nas malhas da intrincada linguagem e também dar-se a conhecer. Considera-se pois que "Arte e literatura são instrumento de Conhecimento — de conhecimento operativo. Desnudam, desvelam, revelam a vida como ela é, indicando a vida que deve ser" 9.
 

1. CANDIDO, A., 1987, 82-83.
2. Op. cit., 39-50.
3. Idem: 39.
4. BARRETO, Lima, 1985
5. Idem, 39-40.
6.SARTRE, Jean-Paul. 1969: 47.
7. SIMON, Iumna Maria. 1978: 59.
8. OLIVEIRA, Franklin de. "Função Política da Literatura e da Arte". In: Revista Encontros com a Civilização Brasileira n* 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978: 82.
9. Idem, ibidem.

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Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Goiás, Doutorando em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
 

Página on line em 17 de fevereiro de 1998
 

 

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