DEPRESSÃO E LITERATURA
Carlos Alberto Pessoa Rosa
DO VERNÁCULO:
DEPRIMO: SENTIDO PRÓPRIO: abaixar, fazer descer
por uma pressão, enterrar, submergir.
ANGÚSTIA: SENTIDO PRÓPRIO: espaço
apertado, estreiteza, desfiladeiro. REFERINDO-SE AO
TEMPO: brevidade, curta duração.
Quando fui convidado a escrever sobre depressão e literatura, a
primeira pergunta que me veio foi esclarecer se queriam que eu escrevesse
da depressão do autor ou de sua presença na obra literária,
o que gerou uma dúvida pessoal: Em que medida é possível
separar um do outro? Marie Bonaparte, em citação de Gaston
Bachelard, na obra "A Água e os Sonhos", mostrou os estreitos vínculos
que ligam o trágico da vida e o trágico literário.
"Realmente – diz a autora –, o gênero de morte escolhido pelos homens,
quer seja na realidade para eles mesmos pelo suicida, ou na ficção
para seu herói, nunca é ditado pelo acaso, mas, em cada caso,
é determinado de um modo estritamente psíquico."
É o autor que traça a trama, dá um encadeamento
à narrativa, arma-se de todos os meios da realidade para concretizar
a morte, seqüência que a vida não tem. Portanto, o romancista
sempre revela algo de si nos personagens. Sem o peso da transferência
das emoções vividas pelo autor para os personagens, a obra,
com certeza, não convencerá. O suicídio do personagem,
e percebam que trago a tiracolo da depressão o suicídio,
só é possível à medida que o autor experimenta,
conscientemente ou não, as emoções que cercam a ação.
Talvez esteja aí o motivo de, muitas vezes, autor e obra confundirem-se.
Foi o caso, por exemplo, de Virgínia Woolf, escritora britânica,
autora de "Orlando" e "Ondas", que se suicidou por afogamento após
uma crise de depressão, ou de Sylvia Plath, poeta norte-americana,
que se matou intoxicada com o gás de cozinha. Entre nós,
Pedro Nava, médico, cuja obra é acentuadamente memoralista,
suicidou-se com um tiro de revólver. Não é somente
na literatura que observamos esse fenômeno. Na pintura, Van Gogh
cortou a própria orelha e se matou com um tiro; Charlie Parker,
músico, morreu por uso de heroína.
Logicamente, há autores que mantiveram certa distância
entre a realidade e a ficção. É o caso, por exemplo,
de Graciliano Ramos, autor de "Angústia", "Vidas Secas" e "Memórias
do Cárcere", apenas para citar algumas de suas obras.
A presença da depressão na literatura não é
algo novo. Os gregos, para uma melhor compreensão de suas emoções,
deslocaram-nas para seus heróis e deuses. Na mitologia, Anticléia,
mãe de Ulisses, morre consumida pela saudade do filho que parte
para Tróia. Laerte, pai de Ulisses, alquebrado e amargurado com
os desmandos dos pretendentes à mão de Penélope, passa
a viver no campo, entre os servos e, numa estranha espécie de autopunição,
cobre-se de andrajos, dorme nas cinzas no inverno e sobre as folhas no
verão. No mesmo mito, nem o cão escapa das mãos do
artífice e presenciamos a afeição do cão Argos
pelo herói:
E um cão, que estava deitado, erguendo a cabeça,
eriçou as orelhas: era Argos que o paciente Ulisses havia
criado antes de ir para a sagrada Ílion (...)
Abandonado na ausência de seu senhor, rolava diante do portal
sobre os estrumes das mulas e dos bois.
Ali estava deitado Argos, comido das carraças.
Vendo aproximar-se Ulisses, agitou a cauda e baixou a cabeça,
Faltaram-lhe forças pra chegar até onde estava seu senhor.
Este, voltando a cabeça, chorou...
Od. XVII, 291-304.
Argos estava morto. Havia-o matado a saudade. Percebemos que a angústia
provocada pelo distanciamento do objeto de adoração levou
os pais de Ulisses e o cão a um desinteresse, total ou parcial,
pela vida. A mãe deixa-se morrer; o pai vai carregar o mesmo fardo
dos servos, veste-se mal e dorme nas cinzas e nas folhas; o cão
rola sobre os estrumes das mulas e dos bois. O que são a cinza e
o estrume que não o residual, aquilo que resta após o fogo
ou a digestão, portanto, o cadáver, o corpo sem o fogo da
vida? Escatologicamente, as cinzas e as fezes simbolizam a nulidade. Não
devemos nos esquecer ainda que na mitologia o cão está associado
à morte, aos infernos, ao mundo subterrâneo. E o que era o
Hades para os gregos que não a metáfora da própria
depressão? O mundo subterrâneo, o inferno, tão temido,
que não o citavam por medo de lhe excitar a cólera. Hades
era um imenso império localizado no "seio das trevas brumosas",
nas entranhas da Terra.
As mesmas entranhas são retomadas em a "Divina Comédia"
quando, no Canto IV do Vol. I, "Inferno", o narrador, junto do Poeta, desce:
Do vale desse abismo doloroso,
Donde brado de infindos ais troava.
Tão escuro, profundo e nebuloso
Era, que a vista lhe inquirindo o fundo,
Não distinguia no antro temeroso.
...
Dos que lá são o angustioso estado
Causa a que vês no rosto meu impressa,
Piedade, medo não, com has cuidado.
...
Em que o abismo a estreitar-se já começa,
Escutei: não mais pranto lastimeiro
Ouvi; suspiros só, que murmuravam,
Vibrando do ar eterno o espaço inteiro...
Mas entre os gregos e Dante, temos "As Aflições e Paciência
de Jó", uma das passagens bíblicas mais lindas e que relata
as angústias de um homem fiel a Deus ante todo tipo de provação.
Agora, as emoções estão no interior do próprio
ser:
Havia na terra de Uz, um homem, cujo nome era Jó; homem íntegro
e reto, temente a Deus e que se desviava do mal. Porém Satanás
desafiou o Senhor dizendo-lhe que bastaria tocar em seus bens e sua pele
para Jó blasfemar contra ele. Deus então deixou tudo que
Jó possuía nas mãos de Satanás. Vítima
de assalto, fogo, morte dos filhos e tumores malignos, mesmo tendo sua
esposa pedindo para amaldiçoar Deus, Jó mantém o respeito
a ele. Sentado sete dias e sete noites, com amigos que vieram em seu auxílio,
Jó passou a falar de suas tristezas:
Pereça o dia em que nasci
e a noite em que se disse:
Foi concebido um homem!
...
Escureçam-se as estrelas
do crepúsculo matutino dessa noite,
e que ela espere a luz, e a luz não venha;
que não veja as pálpebras
dos olhos da alva,
pois não fechou as portas
do ventre de minha mãe,
nem escondeu dos meus olhos
o sofrimento.
Por que não morri eu na madre?
...
Por que se concebe luz ao miserável
e vida aos amargurados de ânimo,
que esperam a morte, e ela não vem?
...
Por que em vez do meu pão
me vêm gemidos,
e os meus lamentos
se derramam como água?
...
Não tenho descanso, nem sossego,
nem repouso,
e já me vem grande perturbação.
O objeto de adoração vincula-se a uma visão religiosa
do mundo; a mãe, na transposição mística do
cristianismo, passa a ser a própria Igreja. Jó caminha pela
negação de sua existência, maldiz o nascimento, geme
e lamenta, deseja a morte, aproxima-se de uma grande perturbação.
Há também em Jó referência às cinzas:
"Deus, tu me lançaste na lama, e me tornei semelhante ao pó
e à cinza".
Sobre Graciliano Ramos, diz Otto Maria Carpeaux na introdução
de "Angústia": O material desse classicista é bem estranho:
é o mundo inferior, o mundo infernal. Lá, as almas são
caçadas por um turbilhão demoníaco de angústias,
como as almas no átrio do Inferno de Dante.
A novidade é que o objeto da angústia é seu próprio
habitat, a cidade e as relações do homem para sobreviver.
No âmbito da criatividade, já notamos em Graciliano um trabalho
perfeito com as imagens e a relatividade do tempo cronológico. O
próprio início vem aparentemente de um vazio: "Levantei-me
há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci
completamente." O que é a noite (nyx) que não a filha do
caos e a mãe do céu (Urano) e da Terra (Gaia)? A noite carrega
no lombo o sono e a morte, os sonhos e as angústias, a ternura e
o engano. As noites, segundo a vontade dos deuses, eram prolongadas como
as noites de Graciliano: "Das visões que me perseguiam naquelas
noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à
realidade e me produzem calafrios."
Estar deprimido é continuar na noite, "agitado, cheio de terrores,
uma tremura nas mãos, que emagreceram", vendo "tipos bestas" que
"ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando, indecentes".
O personagem sente-se como um rato, exatamente: "Quando avisto essa cambada,
encolho-me, colo-me às paredes, como um rato assustado. Fujo dos
negociantes que soltam gargalhadas enormes, discutem política e
putaria."
Não é somente o rato, animal noturno e repulsivo, símbolo
ctônico, que habita a profundeza e a escuridão; o verme, em
sua viscosidade e lentidão, também. Assim é o tempo
na escuridão, linhas viscosas a formar um novelo confuso: "Dr. Gouveia,
Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário,
tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes... Essas sombras
se arrastam com lentidão viscosa, misturando-se, formando um novelo
confuso." Quando "afinal tudo desaparece", o personagem fica um "tempo
sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas,
suprimo curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos,
umas tarjas muito pretas."
No vazio de si, suprimindo as tortuosidades, restam os borrões,
tarjas de luto, a depressão e a morte.
Como os senhores perceberam, desde a Antigüidade, o escritor usa
a palavra, assim como o pintor a tinta e o ator, as variações
tonais dos sons e a gesticulação, para melhor compreender
o mundo que o cerca, (re)criando assim um mundo próprio, um mito
pessoal, que lhes permita apreender tudo aquilo que soe irracional e incompreensível.
Para finalizar faço minhas as palavras de Freud: "Não
acredito ser necessário definir a angústia. Todos vocês
devem ter experimentado, uma vez que seja, esta sensação,
ou, melhor dito, este estado afetivo."
BIBLIOGRAFIA:
Alighieri, D. Divina Comédia. Trad. José
P. X. Pinheiro. V1, Ed. Tietê Limitada, 1954.
Bachelard, G. A Água e os Sonhos. Ed. Martins
Fontes.
Biblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida.
2ª Ed., Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
Brandão, J.S. Mitologia Grega. 2ª Ed., Ed.
Vozes, 1988.
Freud, S. Obras Completas. Trad. do Alemão por
Luis Lopes-Ballesteros y de Torres. Ed. Biblioteca Nueva, Madrid, 1967.
Ramos, G. Angústia. 14ª Ed., Livraria Martins
Editora, 1972.
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O autor é poeta, contista, ensaista, responsável
pelo periódico: Meio-Tom Poesia e Prosa, professor universitário
e médico. O texto acima foi apresentado no simpósio
patrocinado pelo Deptº de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de
Bragança Paulista sobre depressão.
Página on line em 10 de março
de 1998
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