Estes versos, entre os mais populares da literatura espanhola do século
XX, são um fragmento do Romance Sonâmbulo; um poema-síntese
da obra Romancero Gitano, de Federico Garcia Lorca. Muito antes de sua
primeira edição em abril de 1928, o Romancero Gitano correu
de boca em boca o cotidiano dos arruados, das feiras, das tabernas,
dos acampamentos ciganos, das praças; à maneira das manifestações
poéticas medievais.
Sobre a poética de Garcia Lorca, o crítico Julio
Garcia Morejón (1969) observa que o Romancero Gitano foi e continua
sendo o responsável pela fama que o autor goza na Espanha e em outros
países; especialmente pelo mito cigano que se tem criado em torno
do poeta granadino, de Fuente de Vaqueros. A propósito desse mito,
Garcia Lorca declarou em carta ao poeta Jorge Guillen que "os
ciganos são um tema e nada mais"; pois desagradava ao poeta o fato do Romancero ser visto como obra unicamente presa a este sub-tema.
Garcia Lorca foi um poeta que viveu na tradição oral.
O fascínio do público por sua poesia emanava mais pela maneira
que o poeta recitava, do que pelos versos que escrevia (Cf. Morejón,
op. Cit.). Os recitais de Garcia Lorca eram considerados por seus contemporâneos,
como um dos mais claros exemplos, na modernidade, da arte de trovar da
alta Idade Média espanhola. Isto explica o espírito determinante
e profundo do seu "trovar". O vasto estudo de Morejón (1969, op.,
cit.) mostra que a crítica, em geral, tem se ocupado em estudar
os aspectos da fala e da comunicação lírica do Romancero
Gitano e põem em relevo a simbologia popular, ou a emblemática
que expressa o tom e o sentido de um universo de pressentimentos, augúrios,
vida-morte que é, em resumo, o Romancero Gitano. Com efeito, esse
universo converge para o título "Romance Sonâmbulo".
Do ponto de vista conceitual, esse título não traz um significado
lógico; contudo produz uma impressão sensorial e nos situa
na natureza, em suas dimensões cósmicas entre a vida e a
morte para dar impressão de naturalidade dentro de um angulo surrealista.
Do ponto de vista estrutural, o estribilho "verde que te quero verde"
suscita uma obsessiva repetição. O que se repete é
uma coisa, algo insistente, fatal e necessária à composição
do caráter amoroso/dramático da alma cigana no poema.
Como quer a poesia, o poeta evoca o verde e a lua com a sua fatídica
presença branca; evoca a água, com a sua possibilidade de
fecundação e de erotismo e toda fauna e a flora para compor
o processo de criação. Estes são emblemas de amor
e morte, vida e dor, peculiares na poética lorquiana. Essa emblemática
é apenas uma parte do roteiro com a qual o leitor se defronta
na intensa caminhada do eu-lírico, desse texto plural que
é o Romanceiro Gitano. No espaço do Romance Sonâmbulo,
a presença do mar, do barco, da sombra, do cavalo, da montanha,
do vento, da mulher na varanda incorpora-se a um motivo; o mais constante
na poesia de Garcia Lorca: a lua, sempre. Tudo isso parece confirmar a
pertinência de que - seja no quadrante da mitologia,
do folclore, dos contos populares, da poesia - a lua é um símbolo
cósmico. Entre as várias interpretações, este
símbolo representa a divindade da mulher e a força fecundadora
da vida.
A emblemática no Romance Sonâmbulo sugere uma leitura
paralela, por menor que seja, das intenções do escritor
(teatrologo, poeta) das intenções do artista plástico
que ilustrava seus próprios livros, inclusive as cartas para os
amigos. Segundo Miguel Garcia (Circulo de Leitores, 1998), os desenhos
de Lorca crescem ao calor da amizade e da poesia. Para citar um exemplo,
eis um comentário de Juan Miró, citado por Miguel Garcia
(op. Cit.): "Os desenhos de Lorca me parecem uma obra de um poeta, que
é o melhor elogio que posso fazer a toda expressão plástica".
A poesia e a pintura têm marchado constantemente de mãos
dadas, diz Mario Praz (1982:3). Numa perspectiva semiótica, o Romance
Sonâmbulo mostra-nos um personagem que sonha na varanda. Trata-se
de um ponto cósmico, um ser livre em sua relação com
a Natureza; mas não se trata de um sonho, nem de uma relação
meramente bucolica. No íntimo desse quadro habita um ser. Trata-se
do ser humano com seu direito de sonhar e suas limitações.
No espaço do poema, und olhos de "fria prata" e uma sombra expressam
um sentimento de abandono e algo mais que a sua realidade pode suportar.
Esse algo talvez seja o próprio desconcerto do mundo, ou algo
próximo ao conflito que foi descrito por Van Gogh numa carta ao
seu irmão Théo, em 1888. Nessa carta, o pintor impressionista
relata como procurou "exprimir com o verde e o vermelho as terríveis
paixões humanas" (Cf. Dicionário de Símbolos, 1988).
No estudo dos símbolos, o verde está relacionado à
vida e a morte; à imagem das profundezas e do destino. Nas profundezas
habita o verde da esmeralda; a pedra na qual foi esculpido o Graal. No
destino, reside a busca; o andar incessante, próprio do povo nômade;
dos filhos livros da terra. Nessa perspectiva, situa-se a relação
entre a natureza e o sentimento. No poema, a personagem cigana está
quase morrendo na imensidão da luz tenebrosa da lua; Por outro lado,
essa dor também está estreitamente relacionada a sua marginalidade;
a sua condição de perseguido. O seguinte fragmento
sugere:
A noite se fez íntima
como uma pequena praça.
Guardas civis embriagados
na porta golpeavam.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco sobre o mar.
E o cavalo na montanha.
Estes versos finais do Romance Sonâmbulo dão conta da hostilidade,
que vem de muito longe, entre ciganos e poderosos. A ironia mais acentuada
ao final do poema é apenas uma das armas que o eu-lírico
dispõe para manifestar seu protesto contra aqueles que receberam
a missão honrosa de proteger a vida; em vez disso, golpeiam
as portas. A poesia de Garcia Lorca trata da angustia do homem do nossos
dias. Por isso, Morejón (1969:VII) afirma que "todo leitor do Romancero
Gitano vive agitado por esse vento verde do Romance Sonâmbulo que
pode considerar-se, em parte, compêndio e cifra do livro". Desse
modo, o que aproxima o Romancero Gitano e a personalidade do seu autor
não reside no tema cigano, mas na Liberdade; razão pela qual
a poesia de Garcia Lorca, à maneira das canções medievais,
percorre o mundo e vence o tempo.
CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos.
2ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1989.
GARCIA, Miguel. Federico Garcia Lorca: anõ del
centenario. In: Círculo Digital. <http://www.circulolectores.com/plus/lorca.htm>
LORCA, Federico Garcia. Romancero gitano / Poema del
cante Jondo; Llanto por Ignacio Sánchez Mejias; Diván del
Tamarit; Poemas póstomos/. 9ª ed. Buenos Aires, Editora Lisboa,
1956, p. 18 - 21.
MOREJÓN, Julio Garcia (org.). Antologia poética
de Federico Garcia Lorca. São Paulo, Universidade de São
Paulo / Instituto de Cultura Hispânica de São Paulo, 1969.
PRAZ, Mario. Literatura e artes visuais. São Paulo,
Cultrix, 1982.