É desconcertante o que vou declarar, mas facilmente comprovável. A remuneração do trabalho intelectual é quase sempre rebaixada pelos próprios membros das diversas confrarias ou comunidades.
Tomemos o caso de uma conferência, palestra ou mesa redonda. Várias vezes, participando desses eventos, refleti com meus suspensórios: aqui o único que está trabalhando de graça sou eu. O telefonema do convite foi cobrado. A Telesp, portanto, ou qualquer outra companhia telefônica, recebeu o seu bem antes de eu dizer sim ou não. O papel em que o convite foi confirmado não foi doado. Foi vendido à instituição que fez o convite. O carro que levou o conferencista ao local, rodou com combustível que não foi doado. A água mineral servida à mesa para o conferencista regar seu jardim de palavras na garganta, foi comprada. A luz que ali nos ilumina foi vendida pela Companhia Paulista de Força e Luz ou qualquer outra empresa congênere, o mesmo valendo para a força que move condicionadores de ar. A água utilizada para lavar o recinto antes e depois, não foi doada. E, é claro, as faxineiras não trabalham de graça.
Por fim, o coordenador, organizador ou ocupante de qualquer dos cargos que planejou o evento, tem um salário ou remuneração para fazer o que faz. Em geral, uma remuneração incompatível com sua qualificação, porque a mão-de-obra no Brasil é a coisa mais barata do mundo, mas é uma remuneração. Mais barata para quem recebe. Porque, para quem emprega, custa o dobro. De todo modo, não é zero.
Somente o conferencista está trabalhando de graça. Vá você, meu caro leitor, solicitar remuneração pelo seu trabalho. Se você for encanador, eletricista, faxineira, mecânico, manicure, cabeleireiro etc, se exerce enfim qualquer profissão semelhante às citadas, você será remunerado. Bem ou mal, mas será. Ninguém terá o topete de solicitar que você desentupa o banheiro, conserte uma lâmpada, limpe uma casa, arrume um carro, faça unhas ou lave o cabelo de ninguém de graça. Imagine o diálogo: “prontinho, seu cabelo ficou uma graça!” E a freguesa: “muito obrigado!” E abandone o cabeleireiro sem pagar-lhe o devido! Será um caso de histeria e de polícia.
Mas com o trabalho intelectual dá-se o contrário. A primeira dificuldade, a primeira incompreensão vem do seu colega de ofício, ou de alguém que exerça funções em áreas de domínio conexo. Os diálogos se repetem mais ou menos assim: “estamos convidando você para uma palestra no dia tal e qual, no tal lugar, às tantas horas”. E o convidado: “e o que vocês oferecem?” “Como? Não entendi! O que nós oferecemos?” “É. Quanto vou receber pelo serviço para o qual vocês estão me requisitando?”
Desconcerto e perplexidade. No fundo, os que convidam devem pensar assim: “olha a petulância e arrogância desse aí”. Sim, porque antes do convite éramos um brilhante profissional, cujas credenciais nos levaram à súbita honra de receber um convite feito por gente tão digna e chique. Mas, feita a exigência de um pagamento, ainda antes de estipular um valor, por mínimo que seja, fomos imediatamente rebaixados à condição de “esse aí”.
Pois então tendo mais o que fazer, para preservar nosso “vitae” e aperfeiçoarmos nosso ofício, a fim de não sermos mais um “desses aí”, os que me convidam, que me desculpem, mas que não tomem meu tempo e vão convidar qualquer um “desses aí”. Pois, se há tanta gente qualificada, disposta a trabalhar de graça, por que vêm eles bater justamente à porta de quem, a duras penas, se esforça para trabalhar profissionalmente?
Que espanto ser profissional no Brasil! Se o trabalho do professor ou do escritor é um sacerdócio, queremos casa, comida e roupa lavada, como os padres. E a cobertura da maior multinacional do mundo, a Igreja católica, com sedes, representações e demais instâncias em todo o universo conhecido. Sei que em qualquer lugar do mundo, um padre será bem tratado por sua Igreja. Mas um professor ou escritor, para ser bem tratado, dependerá de muitas outras sutis complexidades, entre as quais cartão de crédito e qualquer outra moeda que não seja a brasileira. Como se sabe, você não pode viajar ao exterior com nossa moeda. Só se você for para alguns países — como direi? — do nosso nível.
Ocorre, porém, uma exceção nos tais convites. Uma Nestlé, uma IBM — uma da indústria da alimentação, fazendo chocolates; outra produzindo computadores —, um Banco, uma rede de lojas, enfim, quaisquer outros profissionais que atuem em outros ramos, que não o ensino ou a dita cultura, jamais nos farão propostas tão indecorosas, como estas de trabalhar de graça.
Portanto, aviso aos navegantes desses mares: a escravidão foi abolida muito tarde entre nós, é verdade; mas já foi abolida. Em 1888. Mesmo trabalhando de graça, o escravo tinha direito a casa, comida e roupa lavada.
Então, o que propõe quem faz um convite desses? Um recuo até um pouco antes da escravidão. Aceitando a dita proposta de trabalhar de graça seríamos um pré-escravo.
Agora, me digam: não é espantoso que sejam nossos colegas de ofício os autores de propostas tão indecorosas?
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O autor é escritor e professor
da UFSCAR, Deonísio da Silva é Doutor em Letras pela USP
e autor, entre outros livros, do romance Avante, Soldados: Para Trás
(Prêmio Casa de las Américas).