O feminismo e a sujeição social
Paulo Augusto
 

O processo de libertação da população brasileira do jugo daqueles que dominam a política tupiniquim, atualmente empenhada em destruir a idéia do Estado-Nação brasileiros, segundo as diretrizes impostas pelos organismos de representação do capitalismo financeiro internacional, e docilmente aceitas pelos homens no poder, com certeza muito tem a aprender com a experiência vivida pela mulher, nesses últimos 30 anos, quando foi abalada a chamada mística feminina.
A reflexão que se pode fazer neste 8 de março, quando mais uma vez se comemora o Dia Internacional da Mulher, muito tem a informar e a contribuir, se comparamos os ganhos e conquistas das mulheres, que já foram de todo degradadas e espezinhadas, com o grau de degeneração que vamos alcançando na vida social e política do País, sob o domínio dos ditames do chamado homem macho caboclo —  mesmo os formados na Sorbonne ou em Harvard. Para tanto, vamos trabalhar com informações e análises oferecidas pela psicanalista e sexóloga Regina Navarro Lins, autora do livro Na cabeceira da cama (Rocco), a pesquisadora francesa Michelle Perrot (Mulheres Públicas, Unesp) e a historiadora Hannah Arendt (A vida do espírito).
As lutas que culminaram com as atuais conquistas das mulheres e a sua crescente libertação e independência da estrutura social nascida do poder do pai — a ideologia patriarcal, que existe há cinco mil anos e cuja história se confunde com a própria história da nossa civilização — muito podem colaborar para o esclarecimento do processo vivido hoje
pelas populações excluídas no âmbito do neoliberalismo, essa nova ideologia econômica que vem presidindo os caminhos do ocidente neste final de milênio.
Como se vê nos dias de hoje, a mesma bestialização e subjugação de populações inteiras —  independente das condições de classes de seus membros —  por grupos políticos que usurparam o poder político e as manipulam e oprimem são também as características do patriarcado, que submeteu as mulheres ao longo de séculos, fazendo-as acreditar na sua condição de seres inferiores e subalternos, a elas impondo o controle da fecundidade e a divisão sexual das tarefas. O estabelecimento do sistema patriarcal na civilização ocidental, fruto de um processo gradual que levou quase 2.500 anos, desde cerca de 3.000 a.C., consolidando-se em 600 a.C., fomentou a sujeição física e mental da mulher, restringindo sua sexualidade e mantendo-a limitada a tarefas específicas.
A correlação hoje com a sujeição de populações inteiras ao domínio de oligarquias e grupos econômicos se daria igualmente pela promoção – via marketing nos meios de comunicação desses grupos e oligarquias – da impressão de que apenas os ‘‘iluminados’’ do sistema político-econômico (o pai) seriam os predestinados a governar e a administrar a coisa pública, em detrimento dos talentos e das autênticas lideranças surgidas do meio do povo e dos segmentos excluídos do gerenciamento das riquezas nascidas do trabalho e do esforço dos que, enfim, fazem a sociedade.
Especialistas da psicossomática questionam como a maioria dos cidadãos, mesmo dispondo de luminares e estudiosos em seu meio, se permite subjugar-se e manter-se, ao longo dos séculos, sujeitos aos domínios dos que detêm o poder econômico, encontrando, na atualidade, as chamadas neuroses ‘‘de caráter’’ e ‘‘de comportamento’’.
A partir do estudo de Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém (1963), que tem como subtítulo Reflexão sobre a banalidade do mal, pode-se perceber como um comportamento de obediência, de submissão absoluta, implicando na abolição de todo livre arbítrio, pode levar ao estado de coisas vivido hoje nas sociedades mantidas a ferro e fogo por pequenos grupos e oligarquias, sem que, com isso, se ache nada ‘‘anormal’’ ou que algo esteja ‘‘fora do lugar’’, exatamente como a submissão da mulher ao correr dos séculos aos preceitos do sistema patriarcal.
Aqui podemos encontrar o retrato de pessoas que conosco convivem e a explicação para comportamentos de certas figuras sociais que, tendo há pouco apresentado um comportamento ‘‘rebelde’’ ou ‘‘de esquerda’’, são introduzidos no sistema e se transformam em propagandistas da continuidade da ordem vigente, ou seja, do status quo. No caso das mulheres, foram elas cúmplices durante milênios na perpetuação do sistema patriarcal que as oprimia, acreditando em sua inferioridade e transmitindo os mesmos valores, através das gerações, aos filhos de ambos os sexos.
Como Eichmann, que contribuiu de forma decisiva com Hitler na matança de seis milhões de judeus, vemos hoje multidões de pessoas a quem foram extraídas a ‘‘faculdade de pensar’’. No Brasil, em especial, o fato se
dá como resultado de 21 anos de ditadura militar, quando houve uma completa despolitização e imbecilização das massas, num processo que culmina na ‘‘normopatia’’, termo que designa personalidades que se caracterizam por sua extrema ‘‘normalidade’’, no sentido de conformismo com as normas de comportamento social e profissional.
‘‘Pouco fantasistas, pouco imaginativos, pouco criativos, eles costumam ser notavelmente integrados e adaptados a uma sociedade na qual se movimentam com desembaraço e serenidade, sem serem perturbados pela culpa, a que são imunes, nem pela compaixão, que não lhes concerne; como se não vissem que os outros não reagem como eles; como se não percebessem mesmo que os outros sofrem; como se não compreendessem porque os outros não conseguem adaptar-se a uma sociedade cujas regras, no entanto, lhes parecem derivar do bom senso, da evidência, da lógica natural. Sendo bem-sucedidos na sociedade e no trabalho, os normopatas se ajustam bem ao conformismo, como num uniforme, e portanto carecem de originalidade, de ‘personalidade’. O recurso a esse modo de funcionamento psicoafetivo pode estar ligado à pura hipocrisia e à perversão ou à má-fé. É o caso de Eichmann. No fundo, a principal característica constitutiva de sua banalidade é a sua ‘falta de personalidade’ verdadeira. Em outras palavras, Eichmann é um normopata, e essa normopatia é que Hannah Arendt designa pela expressão ‘banalidade do mal’.’’
Essa ausência de pensamento, que tão bem caracteriza o homem deste final de século, entregue aos ditames da mídia, com seus clichês, frases feitas, códigos de expressões padronizadas e convencionais, que têm como função socialmente reconhecida proteger da realidade, das solicitações que os fatos e acontecimentos impõem à atenção para sua própria existência, é também objeto de estudo do psiquiatra e psicanalista Christophe Dejours, no livro A banalização da injustiça social, que complementa:
‘‘Em outras palavras, encontram-se aqui, no nível dos membros de toda uma sociedade, as três características da normopatia: indiferença para com o mundo distal (o mundo longe da gente) e colaboração no ‘mal tanto por omissão quanto por ação’; suspensão da faculdade de pensar e substituição pelo recurso aos estereótipos economicistas dominantes propostos externamente; abolição da faculdade de julgar e da vontade de agir coletivamente contra a injustiça.”
No plano político, com a desorientação das esquerdas e dos movimentos de emancipação coletiva que marcaram outras épocas, Procura-se Desesperadamente por Suzy (filme de Madonna), ou seja, por uma tábua de salvação, que, no pós-Muro, não se sabe de onde poderá vir. E, assim, como sociedade espoliada e degenerada, nos mantemos como a mulher do passado, vista pela história popular, na qual uma jovem muito desejosa de viver uma relação de amor deixa um bilhete num local onde seria fácil de ser encontrado, no qual está escrito: ‘‘A qualquer pessoa que encontre esse bilhete: Eu te amo’’. Não esquecer, contudo, que essa mulher já era, viveu no passado. Hoje, há um novo tipo de donzela...

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O autor é poeta, ensaista e jornalista de Rio Grande do Norte  (Natal).

 

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