LER, ESCREVER, CRITICAR, PRODUZIR
ou apenas ir ao encontro de outros espectros...
 
Maria da Conceição Carneiro Oliveira (Frô)
 
Ler é dialogar. Escrever é dialogar. Como é bom quando o escritor tem uma preocupação com o diálogo, quando ele nos desestabiliza e nos convida a outros planos.

Ler é um caminho sem volta, porque você passa a acompanhar seu escritor num passeio incrível. Escrever é se propor a desafios. Bons escritores nos transformam, nunca, jamais poderemos ser os mesmos, depois que conhecemos Borges, Saramago, Garcia Marques, Machado, Pessoa, Drummond só para ficar num universo que é comum a todos dessa lista a que destino esse meu manifesto.

Penso sempre nas minhas listas de interlocutores como uma comunidade virtual, algo como o Edifício Santa Helena dos modernistas. Certa vez dispus em uma relação de interlocutores um artigo do Lêdo Ivo (1) onde ele falava da imensa solidão dos poetas de hoje e da quase impossibilidade deles ganharem visibilidade, na era da mídia, onde somos todos espectros.

As reflexões de Lêdo Ivo me ensinaram que a Net pode ser o caminho dessa visibilidade, mas um caminho produtivo, onde quem escreve pode trocar impressões e informações, pode ir tentando perceber rotas, trajetórias, pode ir observando estilos, pode enfim descobrir que há identidade nessa nova geração de escritores, independente da idade que cada um tenha. Porque a frescura dessa nova geração não se dá pela faixa etária e sim pela diversidade, pela ótica com que enxerga o mundo de maneira diversa, mas tão próxima. Pela análise que ela é capaz de fazer, sem recorrer às fórmulas fáceis, de que vivemos numa crise de valores e de que refletimos em nossas reflexões essa crise.

Eu consigo ver semelhanças no meu poema Sabor de espanto (2) e no poema buraco no teto do Marcos Gimenes (3), qualquer dia desses boto minhas impressões num arquivo word e envio para vocês que são pacientes leitores de minhas divagações. Mas não acho que foi coincidência ambos poemas estarem na mesma Antologia, como não foi coincidência Marcos e eu irmos parar em outros mesmos portos...

Há uma nova geração observando o mundo, uma geração privilegiada e condenada, somos parte dela, não tenhamos dúvida disso...

Privilegiada, porque temos acesso a um universo gigantesco de informações, associado à facilidade de comunicação mais genial da história.

Posso conversar com vocês que estão espalhados em cada canto do país em segundos, posso ver uma imagem de pessoas destroçadas quase que no mesmo momento que elas estão sendo destroçadas. Nunca em toda a história da humanidade a informação foi tão rápida e tão numerosa, isso é sem dúvida um privilégio. Nunca ela foi tão impessoal e íntima como é agora.

Mas também, nunca estivemos tão condenados ao tempo como estamos agora. Às vezes fico pensando que os operários da Inglaterra do XVIII (façam as devidas ressalvas às péssimas condições de vida e trabalho), são "fichinhas" perto da carga de trabalho a que eu e muitas pessoas que conheço estamos submetidas.

Estamos condenados a processar numa velocidade enlouquecedora uma quantidade de imagens, textos, sons, experiências, gigantesca. Estamos condenados a nos posicionar, a refletir, a digerir e, às vezes, a vomitar de forma indigesta, coisas que nem bem sabemos como, onde e porque começou e, tudo isso associado à inexorável sina de ter que ganhar a vida. O tempo, nunca foi tão valioso como o é agora, a poesia nunca foi tão necessária como é agora.

Conheço gente que está doente por causa da Net. Conheço gente que está salvando-se de abismos profundos por causa da Net. Eu já estive doente, porque queria fazer tudo que necessitava e ainda tudo que sonhava (4).

Agia, noites a fio, compelida e contraditoriamente por opção, numa busca louca, porque escolhi pensar o mundo numa velocidade que Marinetti jamais sonhou na vida... Por que decidi pensar esse mundo com criatividade, cidadania, esperança, participação, porque decidi não vê-lo passar pelos meus olhos como a bandinha do Chico, porque esse mundo não toca apenas coisas do amor...

Somos uma geração privilegiada, porque temos em nossas mãos facilidades que nenhum outro escritor sonhou no mundo. Troco meus textos com uma boa dezenas de pessoas, pessoas que respeito, pessoas de diversas áreas acadêmicas ou profanas (vocês já repararam como na Net tem médico escritor, tributarista escritor, professores, químicos, matemáticos, psicólogos, biólogos, editores, historiadores, analistas de sistema, webmaster, sociólogos, todos escritores???) Dificilmente conseguiremos nos profissionalizar, mas é preciso ter isso em mente para exercermos um trabalho profissional senão, jamais faremos algo de qualidade...

A Net tem sido um universo de alegrias e conflitos, um universo real de trocas, de conhecimento, contentamento e também aborrecimento, mas tem sido um universo de diálogo.

Troco informações, reflexões, projetos, sonhos, poemas, conto, prosa e retórica com gente de todas as idades, de muitos universos sociais, de alguns cantos do mundo, conhecidos e desconhecidos.

A Net recuperou a minha vontade de escrever (5). Voltei a escrever vorazmente, assim como lia vorazmente durante esse tempo de briga com a escrita literária. Voltei a escrever porque encontrei possibilidades, encontrei leitores, encontrei caminhos, encontrei interlocutores, encontrei enfim, sentido para escrevinhar.

Mas o que venho observando (e cada dia tendo maior certeza em minhas viagens pela Net) é que está nascendo uma nova geração de escritores. Escritores espectros é bem verdade, mas escritores, sem sombra de dívida ou dúvida. Sabem por quê? Porque quando encontramos interlocutores temos uma geração.

Não há registro — na história da literatura ou da ciência — do nascimento de qualquer produção significativa de cultura, feita de forma isolada. Produção de cultura é gregária por natureza. Cultura é — para além de um meio de produção de fungos — resultado da produção humana.

Por que vocês acham que até hoje os clássicos são os clássicos? Por que Camões, Shakespeare, John Done, Plutarco e todos humanistas e renascentistas não podem faltar em nossas estantes, nas listas de vestibulares, enfim em qualquer sociedade que se diz herdeira da cultura clássica ocidental? Porque ambas as gerações que esses indivíduos criaram (e com a mesma intensidade
foram produzidos) se encontraram pelo mar, através das trocas comerciais e dialogaram culturas, experiências. Por isso os humanistas nasceram, por isso o Renascimento se deu na literatura e nos demais campos das artes, das técnicas e das ciências. Por isso e assim se fez a literatura Ocidental.

Sinto que faço parte de uma geração, de uma comunidade que precisa falar ao mundo para não se perder na condenação dos espectros.

Descobri pelas minhas madrugadas, navegando aqui e ali que não pensava sozinha determinadas coisas. Nas primeiras investidas meu veleiro corria sem paradeiro, como se tivesse tateando as correntes marítimas, aportava aqui e ali num Anel de poesia, numa página de amigos oura num e-mail estranho ou por um globinho da web via um ICQ esquisito.

Eu como uma exímia exploradora de terras desconhecidas ia fazendo contatos, mandando mensagens malucas e recebendo outras tantas, num código esfumado por não poder olhar direto nos olhos do meu interlocutor. Mas procurava apurar o ouvido e a mente para saber que sons eram aqueles que os tambores dessas novas terras ressonavam e que de cá minhas aurículas achavam agradáveis, estranhas, interessantes.

Alguns, por mais que eu tentasse me contatar —  por maneiras esdrúxulas ou convencionais, permaneceram calados. Acho que se assustaram, ressabiaram-se. Deviam se perguntar: que estranho visitante é esse que aporta assim em minha costa, explora meu relevo e sem cerimônias se aproxima?

Mas eu achava que de alguma forma o contato viria e buscava organizar minha exploração. Queria descobrir que missa rezavam que santos ou deuses ou demônios adoravam..

Nessas inúmeras viagens, às vezes silenciosas, às vezes trocando presentes — um poema aqui, uma crônica ali, uma crítica lá — barganhando bugigangas por ouro puro, ou ouro de tolo por alguma idéia preciosa, fui construindo minha rota. Descobri que a troca de informações pode ser mais organizada, solidária e construtiva.

Mas descobri também uma nova América e sei que é preciso não se perder nesse universo. É preciso, às vezes, recuperar a calma das redes do Ceará dos Capistranos de Abreu do século XIX, do velho nordeste produtor de cultura, produtor de cultura brasileira e produtor de cultura universal.

Meus pacientes leitores devem estar pensando, mas o que diabos é isso? O que significa tudo isso? Que, afinal, essa maluca quer dizer?

Gosto de convites, convido-os agora a refletirem comigo: se não conseguirmos buscar uma tranqüilidade interna, morreremos todos numa angústia infinita.

Faça de suas reflexões um remédio sadio (6). Ah! O convite, claro! Perdoem-me, caros leitores: convido-os a destruir um mito, construir um abrigo e brincar de crítico. Acompanhem-me:

Eu sou paulista, prefiro sempre dizer santista, porque minha cidade tem mar, é linda e não mata sua história e suas heranças como a velha Sampa, fustigada de dor e horror pela elite paulistana. Uma elite sem élan que virou referência de crítica, infelizmente.

A elite burguesa, industrial e financeira paulistana construiu uma auto imagem da produção, do progresso da velocidade. Tudo nessa cidade vende a idéia de rapidez e ininterrupção.

Em São Paulo trabalhamos 24 horas por dia! Aqui os supermercados vendem ininterruptamente, mesmo que 20% da população não tenha emprego para entrar e apreciar as megas ofertas da madrugada; as academias recebem pessoas para manter a forma de madrugada, os amantes pedem telegramas fonados às 5 horas da manhã, as pessoas fazem programa para tomar café no aeroporto e sopa no Ceasa às duas da matina (7)...

Curiosamente foi em São Paulo que começou a Semana de Arte Moderna (curioso nada, aquele devaneio jamais poderia ter acontecido sem a grana dos Mecenas que financiaram a semana, fecharam o Teatro, etc...) Enquanto isso, no Rio, em Minas e no Nordeste os poetinhas faziam história...

Bairrismo meu? Não, de forma alguma, vivo aqui, gosto até de Mário de Andrade... Mas São Paulo não tem tempo para fazer poesia, não tem tempo para refletir... As pessoas que moram aqui, até as mais ilustradas têm um orgulho besta de urbanidade (8), querem ganhar dinheiro (quem não quer?), mas se acham infinitamente superiores, quando vão ao litoral norte ou escrevem seus artigos no Jornal da Moda.

Alguém já parou para analisar a empáfia como certos s articulistas da Folha de São Paulo tratam tudo e todos? Eles escrevem e vêem o mundo de forma diferente que os demais colunistas. Quem se lembra quando eu disponibilizei para vocês o desprezo blasé com que Nelson Ascher (9) tratou o prêmio Nobel do fim do milênio?

Alguém refletiu sobre as coisas que ele disse sobre um escritor sábio, velhinho que ao escrever, pega carinhosa e desafiadoramente pelas nossas mãos leitoras e nos carrega para aquele universo que não tem mais volta? Alguém observou o que o senhor Ascher disse sobre o idealizador de Blimunda? Deuses, alguém viu como ele transforma os méritos da Flor do Lácio e da belíssima metáfora da Jangada de Pedra em algo pasteurizado, amorfo, acético e preconceituoso como é tudo nessa cidade?

Mas por que ele fez isso? Desprezo, inveja, ignorância, falta de bom-senso? Não acredito que não seja, espero que não seja, mas eu tenho uma hipótese.

Em São Paulo (10) existe a ditadura do ser diferente, do ser criativo, do ser único. Se todos laureavam o Nobel era preciso estraçalhá-lo. Em São Paulo se faz arte estraçalhando corpos, idéias. O padrão de arte da elite intelectual paulista é o "Notícias Populares" , nem Dali (11), foi capaz de imaginar um monumento tão grotesco! Aqui a crítica se faz, ou pelo menos assim se propaga, de forma corrosiva, cínica, destruidora e na maioria das vezes não acrescenta absolutamente nada a não ser mágoas e impropérios.

Mas aqui não se produz literatura, pelo menos a visível, a que é impressa em celulose....

Ok. Ok. Vocês me lembrarão Arnaldo Antunes e uma pequena gama de paulistas produtores de cultura, perdoem-me esqueci de falar dos poetas da Net... Esqueci de mencionar uma geração de espectros que solitariamente, histericamente, tristemente, insiste, persiste em interagir com o mundo.....

Então voltemos nossos olhos a eles e às águas por onde navegam.

Qual é o mar da atualidade? Quais são os portulários? Quem são os navegadores, os comerciantes, os livreiros, os mecenas? Onde estão as jóias raras que fazem os modernos monges copistas trabalharem até altas horas da madrugada?

Para mim (e tenho certeza que para todos vocês que já aprenderam a nadar nesse mar) nosso novo oceano é o mar da Rede. Caiu na rede é peixe. Peixe de um mar atemporal e virtual.

Somos peixes sem e com o peso do cristianismo, peixes massacrados pela velocidade da informação, peixes que nadam rápido e que querem sair da solidão, peixes que mergulham profundamente em suas entranhas e escancaram para o mundo todas as suas mais escondidas dores, peixes voadores, sonhadores.

Beijos a todos, boa viagem nesse mar rico e esquizofrênico das linguagens dessa nova geração de peixes.
 

NOTAS:

1- Agradeço a Cora Ataíde por ter me reconduzido aos mares do Jornal de Poesia. Esse texto do Ledo Ivo lá se encontra numa entrevista feita pelo Cláudio Alencar.

2- Poema Sabor de Espanto pode ser lido na minha hp — http://members.xoom.com/Afrodite_Fro foi também editado pela Câmara Brasileira de jovens Escritores na Antologia de Novos Talentos, vol. 1 maio, RJ, maio de 1999.

3- Marcos Gimenes é escritor dentre outros estilos se dedica ao estudo e produção de Limericks parte de seu trabalho pode ser conhecido em seu site: http://sites.uol.com.br/msalun

4- Passei a dormir 4 horas por dia, já tenho tendinite, meus olhos estão cada dia piores, aos trinta e cinco anos, sinto me, profundamente, cansada...

5- Desde quando aprendi a escrever aos 6 anos, escrevia sem parar, aos 14
parei, nunca mais escrevi nada. Vinte anos se passaram e, eis que nesse
Universo virtual , voltei a escrever.

6 - Procurei o site, mas não achei, fico devendo, mas na Net tem até uma
sugestiva farmácia de pensamentos...

7 - Algumas no meio disso acompanham a trajetória da CPIs, algumas tentam se salvar da leptospirose durante as chuvas de janeiro, fevereiro, março, abril ...

8 - Please, não me massacrem, observem apenas em cada palavra dita como o ser paulista é algo cômico. E às vezes, ser paulista, não necessariamente, reduz o indivíduo a ter nascido nesta terra de espólio de bandeirante.

9 - Leiam também no JP do Soares Feitosa a matéria do Nelson Ascher e as correspondências entre ele e o Feitosa.

10 - Leiam aqui uma metáfora para todos os grandes centros urbanos onde se estabeleceu a ditadura da criatividade.

11 - Desculpem-me o didatismo, vício da profissão — refiro-me ao monumento que Dali sonhara construir com os ossos dos mortos da guerra Civil Espanhola.
 

Página atualizada em  19 de mario de 1999
 

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