CANTIGAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA
Maria das Graças Ferreira (*)
A morna é o eco da nossa
Tragédia sem eco
(Jorge Barbosa)
Destinada, principalmente, à doutrinação da classe
dominante, a prosa de D. Duarte (na metade do século XV) oferece-nos
a primeira definição de saudade. D. Duarte foi também
o primeiro a defender a idéia de que esse sentimento é intraduzível
em qualquer outra língua. Conforme Saraiva e Lopes (1982), o referente
à saudade na prosa doutrinária de D. Duarte embrenha-se na
análise introspectiva de campos semânticos e alcança
por vezes grande sutileza, tais como mostra sua “distinção
entre as diversas formas (todas condenáveis, porque sentimentais)
da tristeza” : nojo, aborrecimento, pesar, desprazer e saudade.
Em 1460, os navegadores portugueses Diogo Gomes e António
da Nóli chegaram ao Arquipélago de Cabo Verde e com
eles as tendências lingüísticas da coroa portuguesa.
Com a evolução dos ideais humanistas, o vocábulo saudade
e sua significação experimentou consideráveis vicissitudes
e continua sendo objeto de estudo da literatura, da música e da
lingüística, entre outros. Para uma abordagem da representação
de tal sentimento no universo “crioulo” , recorremos a “teorias híbridas
(grifo nosso) que se encaixam no que alguns chamam [de] ‘estudos culturais’
[...] estudos pós-coloniais ou interculturalismo” . No caso da tradução,
por exemplo, supomos que D. Duarte condenaria a forma com que o africano
de Cabo Verde assimilou o vocábulo saudade (discurso
do branco) à luz de uma transcri(a)ção crioula:
“sodade” (discurso do negro).
Sobre a proposta de linguagem caboverdiana, Cremilda Araújo
Medina (1987) diz: “Imagine o quanto era subversivo realizar a simbiose
do português com o crioulo. [...] não simplesmente enxertar
algumas palavras do crioulo no português” , mas plantar uma independência
cultural ao reconstituir a linguagem popular. Esse pressuposto permite-nos,
ainda, uma indagação: é possível conceituar
uma escritura negra? Para Zilá Bernd (1997) o único critério
possível seria “discursivo: a emergência de um eu enunciador
que se quer negro é o elemento-chave que singulariza as obras” .
Na África de expressão portuguesa, a saudade é
“sodade”: herança cultural, mistura de línguas, estilos e
costumes. Essa hibridização que “floresce nas culturas empurradas
para a margem” como diz Donaldo Schuller , também ressoa como
“duas vozes que caminham juntas e lutam no mesmo território discursivo”
segundo Mikhail Bakhtin (In: Estética e teoria do romance,1978).
Desse ponto de vista, podemos dizer que a hibridização corresponde
a um espaço e a um tempo de diversidades que proclamam uma unidade
possível. Todavia a união na diversidade entre um eu enunciador
e outros eus enunciadores ocorreria, se à medida que os caboverdianos
assimilassem o discurso do outro fossem também assimilados pela
sociedade envolvente.
Assim, quando a caboverdiana Cesaria Evora emblematiza a saudade ao
cantar a incerteza de voltar a terra de antes; seu cantar se transfigura
em um lamento próprio de quem vive numa terra estranha. Em outras
palavras, diz o romancista e poeta Manuel Lopes quando entrevistado por
Medina em 1986. “Saudade? Muita. Mas saudade não se
sente apenas por um local geográfico – são necessários
elementos vivos, pessoas e circunstâncias de vida, um espaço
físico povoado, em movimento”. Dessa saudade em movimentos, fala-nos
o Mar (morada de sodade) nessa cantiga de sodade , de Armando da Pina:
Mar é morada de sodade
El ta separá-no pa terra longe
El ta separá-no d’nôs mãe, nôs amigo
Sem certeza di torná encontrá
M’pensá na nha vida mi sô
Sem ninguem di fé, perto di mim
Pa st’odjá quês ondas ta ‘squebrá di mansinho
Ta trazé-me um dor di sentimento
A relação entre música e literatura mostra-nos
que o Mar, enquanto casa da saudade, parece comungar com o sentimento
de solidão; uma das características da morna - um tipo
de canção melancólica inventada pelo caboverdiano.
A morna lembra o samba brasileiro e é considerada também
como uma versão blue do fado português.
Entre as possibilidades de leitura, a relação dialógica
saudade x pátria-mãe-terra-casa-água (grifo nosso)
reitera o plural que se quer do texto em que o eu lírico alerta
e reclama a ausência e/ou a falta do outro. Cantando
a morna “Sodade” , Cesaria Evora mostra-nos uma das faces da
diáspora; da coragem dos (nossos) irmãos de língua
portuguesa dispersos pelo mundo. E quanto mais nos achegamos nessa
“sodade”, mais nos defrontamos com a situação-limite resultante
da conquista-colonização, diferença-alteridade, poder-ideologia
que lhe deu origem, como sugere este fragmento do cancioneiro africano:
“Si bô ‘screvê’ me
‘M ta ‘screvê’ be
‘Si bô ‘squecê’ me
‘M ta ‘squecê’ be
Até dia
Qui bô voltá
Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sâo Nicolau”
Desse modo, os artistas da diáspora (onde quer que estejam) vão
tecendo a memória, o “intraduzível” e ultrapassam fronteiras
ao cantar uma sodade desmedida que anuncia tempestades, faz luz e sombra,
cria símbolos e signos em movimento. Os filhos da África,
os artistas da diáspora sabem, onde quer que estejam, que “a caboverdianidade
é um orgulho atávico que se afirma em qualquer lugar do mundo.
Nem a diáspora diminui a força dessa cultura crioula de seculares
raízes” . O artista caboverdiano sabe que faz parte do ofício
cantar e tecer a “sodade” para espantar a desmemória. Daí,
a “Sodade” que une fronteiras, recria símbolos e acolhe
vitoriosos no universo das mornas (poesia, música e dança)
e da prosa africana. Entre os vitoriosos, só para citar alguns
nomes: o trovadores de mornas Eugênio Tavares e Jorge Barbosa,
os escritores Baltazar Lopes, Manuel Lopes, Henrique Teixeira Souza, Ovídio
Martins, Gabriel Mariano, Corsino Antonio Fortes, Arménio Adroaldo,
Vieira e Silva, Oswaldo Alcântara e Tomé Carela da Silva:
porta-vozes do sonho e da sintaxe crioula.
__________
(*) Doutoranda em Teoria da Literatura e Professora de
Literatura Brasileira na UFPE.
Página atualizada em 15 de
junho de 1999
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