Para aqueles que fazem cultura popular no Rio Grande do Norte, a perda sofrida com a morte do poeta Pedro Jacob de Medeiros, aos 77 anos, cordelista e poeta popular dos mais inspirados, além de um impecável cavalheiro no trato com as letras e com as pessoas do seu vasto círculo de amizades, representa o acúmulo, para cada um de nós, de uma responsabilidade que exigirá, a cada momento, uma presença de espírito e um conjunto de habilidades que transcenderão ainda mais nossas atenções e vigílias.
De imediato, nos vem à lembrança que a saída de cena desse Dom Quixote de Subúrbio, se nos coloca em xeque, ao exibir toda nossa fragilidade e impotência diante da organização e eficiência do mal, inscrutado e banalizado nas malhas de uma sociedade burocratizada, arquitetada apenas para vencer e zombar dos pobres e humilhados, ao mesmo tempo nos enche de força e de ousadia, ao se recordar que a luta continua, que a guerra está nas ruas, amanhã será outro dia, e que há poetas novos e novíssimos valores a aguardar de todos nós uma palavra de entusiasmo e de esperança.
Assim é que, nem bem Pedro Jacob viu-se acometido da enfermidade cardiológica que o vitimou, vindo a falecer com a contribuição eficiente e obsequiosa da precariedade e irresponsabilidade dos serviços da saúde pública do nosso Estado, a que, debalde, recorreu, nos chega um novíssimo e arrebatado poeta, o estudante Gabriel Félix Cavalcanti, vizinho de bairro e semelhante em condições de vida e de aspirações, nos seus 12 anos, ardente nos seus projetos e enamorado de vida e da literatura.
Gabriel, que reside no bairro de Nazaré, parede e meia com a Cidade Nova, onde Pedro Jacob mantinha sua Casa da Poesia, estréia na literatura através do Caderno ‘‘Poesiativa’’, veículo de informação e proselitismo da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins, trazendo, na primeira poesia que oferece à gula e aos olhos dos leitores, um canto às mulheres do Brasil, talvez confiante nas armas e apetrechos de batalhas femininos, para a grande travessia do Brasil neste final de século e de milênio.
Haverá de aprender Gabriel, nos bancos de sua Escola Municipal Professor Zuza, que a infância que ele compartilha com incontáveis meninos e meninas, ingressando já nas criações da imaginação fantástica da puberdade e nos ardores da adolescência, resulta de uma associação de idiossincrasias de governantes – homens e mulheres – que pouca identificação tem com a maior parte da nossa população. Entenderá Gabriel que ele e seus iguais do bairro de Nazaré e de Cidade Nova estão nos antípodas da imagem, que ilustra os livros de história do seu Estado, de um Aluizio Alves menino a segurar a mão e a resguardar o chapéu do então governador José Augusto? Um menino Aluizio que se transformaria no paxá de uma dinastia, cujos membros, parentes e agregados, ocupando funções e posições de mando na hierarquia do poder local, obstaculizam e anulam qualquer tentativa democrática de trânsito social ascendente do resto dos vassalos, com a manipulação de um magote de burocratas submissos e funcionários escravizados?
Haverá de compreender que o desmantelamento da saúde pública, em benefício da privatização dos serviços médico-hospitalares – os mesmos que foram negados e levaram à morte o poeta Pedro Jacob –, que permitiu rendimentos excepcionais ao setor, em mãos exclusivas de particulares, permitindo-lhe galgar o segundo lugar no ranking da arrecadação de Imposto Sobre Serviços (ISS) na capital no ano de 1998. Que essa saúde privatizada, em detrimento da população excluída, chegou ao ponto de rivalizar com o cartel das empresas de transportes coletivos de Natal, o primeiro setor em arrecadação daquele imposto, conforme a revista RN/Econômico do último dia 18?
Como poeta, a trabalhar as adversidades da vida mais pelo sentimento (coração) do que pela razão (cabeça), haverá de saber medir e equilibrar, o jovem vate, não permitindo o encorajamento e a disseminação dos principais defeitos da identidade nacional brasileira, baseada, antes de tudo, numa cordialidade, generosidade e hospitalidade muito mais de fantasia, do que consolidadas em foros de verdade.
Haverá de cimentar a construção de sua obra literária quadros e situações, fenômenos e vivências muito mais próximos da realidade tupiniquim do que os arroubos de uma literatice e um beletrismo ocos e reveladores apenas de um verniz de civilização. Saberá que a população trabalhadora, que erige a riqueza deste País, sem direitos e regalias, se cansa a cada dia da vida de ‘‘faz de conta’’, de uma cidadania de segunda classe, de uma existência de indigente. Reconhecerá que a população não é avessa ao conflito, mas o encara, no dia-a-dia, desde as primeiras horas, ao sair de casa com um café minguado para lutar pelo pão, cada vez mais escasso, para matar a fome dos seus.
Perceberá o autoritarismo, a hierarquia de papéis e as posições sociais, que, incrustados no edifício social, apenas beneficiam os bem-nascidos, os que vivem em situações favoráveis, em detrimento do povão dos subúrbios, da galera da periferia, que recorre à malandragem para subverter os códigos da lógica do capitalismo mais selvagem que se vive nesses barrancos.
Compreenderá a compensação da desigualdade econômica e social de todos que sofrem para terem um mínimo de bem-estar, numa sociedade egoísta e mesquinha, cuja ideologia é estimulada pelos bem-pensantes do regime, a fim de manterem seus privilégios e benesses. Uma população que, em sua esmagadora maioria, enfrenta a escassez de equipamentos sociais, como se vê nos bairros de Nazaré e de Cidade Nova, onde não há rede de saneamento básico, moradia adequada a um padrão de vida saudável, ensino de qualidade e sistema de saúde acessível. Onde os transportes são reduzidos, transformando os coletivos em latas de sardinha, e onde a falta de trabalho transforma o homem no lobo do homem, destruindo a possibilidade de paz no seio da família.
Haverá de compreender que quem não tem ‘‘categoria’’ nem ‘‘charme’’ numa sociedade que cultua, através dos programas dos meios de comunicação dos próprios senhores, os preconceitos contra os pobres e excluídos, culmina por alimentar o preconceito contra a sua própria gente. E termina distorcendo a visão que terá da mulher, do jovem, do idoso, do operário desqualificado, do negro, do judeu, do homossexual, do comunista, do trabalhador braçal, dos não-católicos, enfim, do diferente, sem entender que, pela própria condição de pobres e excluídos, todos somos diferentes, estrangeiros em nossa própria terra.
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O autor é jornalista e responsável pelo
suplemento cultural do Jornal de Natal, o "Encartes".