A Poesia infantil no Brasil (1)
Luís Camargo (*)

Resumo: um panorama histórico da poesia infantil no Brasil, desde os primeiros poemas escritos pelos pais para os filhos, no séc. XVIII, até a produção contemporânea. São destacados aspectos relativos à circulação (familiar e escolar) e aos paradigmas de poesia infantil (paradigma moral e cívico, paradigma estético, paradigma lúdico).
 

         A poesia infantil enquanto gênero literário dirigido às crianças surge no Brasil apenas no final do século XIX. Antes, o que existe são poemas manuscritos, de circulação familiar, feitos de pai ou mãe para os filhos, ou escritos em álbuns de meninas e moças e, eventualmente, incluídos posteriormente nos livros de seus autores junto a outros poemas não escritos para o leitor infantil.
        Dentre esses poemas, um dos mais antigos é um soneto de Alvarenga Peixoto (c. 1744-1792), mais conhecido por sua participação na Inconfidência Mineira, frustrado movimento político que tentou tornar o Brasil independente de Portugal, em 1789. Esse soneto  inicia pelo vocativo “Amada filha” e, diz a tradição, foi escrito quando sua filha Maria Efigênia completou 7 anos (em torno de 1786). Nele, Alvarenga Peixoto aconselha sua filha a desprezar a beleza, as honras e a riqueza, cultivando a caridade, o amor a Deus e aos semelhantes. O soneto conclui recomendando: “procura ser feliz na eternidade, que o mundo são brevíssimos instantes”.
        O acervo poético de Alvarenga Peixoto é um pouco maior do que três dezenas de poemas: na realidade, são conhecidos apenas 33 poemas seus. O acervo conhecido de Bárbara Eliodora (1759-1819), sua mulher, é ainda menor: conhece-se apenas um único poema, “Conselhos a Meus Filhos”, que, como o título sugere, é uma coleção de conselhos. Dentre eles, Bárbara Eliodora adverte que “a lição não faz saber, quem faz saber é o pensar” e recomenda o estudo das fábulas de Esopo.
        Esses dois poemas – o soneto de Alvarenga Peixoto e “Conselhos a Meus Filhos”, de Bárbara Eliodora – apresentam um traço que será dominante na poesia infantil brasileira até a primeira metade do século XX: a presença de uma voz poética adulta, que se dirige a um leitor infantil, utilizando o poema como veículo de educação moral.
        No século XIX, poetas como Gonçalves Dias (1823-1864) e Casimiro de Abreu (1839-1860) escrevem alguns poemas dedicados a crianças, incluídos em seus livros dirigidos ao leitor adulto. Afora essa produção de poemas esparsos, que não tem intenção de configurar o gênero poesia infantil, no final do século começam a surgir antologias para utilização na escola.
        Pode-se dizer, assim, que, no Brasil, o gênero poesia infantil surge de braços dados com a escola, visando principalmente a aprendizagem da língua portuguesa. Não são os escritores que querem ampliar seu público, escrevendo também para crianças, mas os professores que começam a organizar e escrever antologias de textos em prosa e verso para utilização como livros de leitura escolar.
        Dentre esses organizadores de antologias, um dos primeiros é o professor João Rodrigues da Fonseca Jordão que, em 1874, publica o Florilégio brasileiro da infância, reunindo poemas que não foram escritos originalmente para o leitor infantil. O Florilégio está organizado por tipos de poemas: sonetos, hinos, odes, baladas, elegias, epicédios, sátiras, epigramas, alegorias, fábulas etc., organização essa que reflete a importância dos estudos de retórica e poética na educação brasileira no século XIX.
        O antologista procurou, segundo suas próprias palavras, ter "o maior cuidado em aproveitar o que fosse estritamente acomodado ao entendimento e à sensibilidade infantis", incluindo, assim, poemas que tematizavam a infância ou escritos para crianças, como, entre outros, "Aos Anos de uma Menina", de Sousa Caldas (1762-1814), "A uma Menina no Dia em que Fazia 15 anos", de Domingos Borges de Barros (1780-1855) e "Preces da Infância", de Gonçalves de Magalhães (1811-1882). Esses poemas, contudo, conservam uma perspectiva adulta, visando à educação moral.
        A fim de favorecer sua circulação, a página de rosto informava que o livro tinha sido aprovado, pelo Governo Imperial, para uso das escolas públicas do ensino primário. Observações como essa passam do Império à República, repetindo-se ao longo do século XX. Em função desse forte vínculo com a escola, até os anos 60, a poesia infantil parece seguir um paradigma moral e cívico, aconselhando aos pequenos leitores o bom comportamento e o civismo.
        Provavelmente, o primeiro livro de poesia infantil no Brasil seja Flores do campo, de José Fialho Dutra (1855-?), publicado em Porto Alegre, em 1882. Mas, na realidade, ele só pode ser assim considerado em função do seu subtítulo, “poesias infantis”, pois os poemas não apresentam características formais ou temáticas que indiquem preocupação com o leitor infantil.
        Em 1886, é publicado o livro Contos infantis, reunindo 27 contos em prosa, de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), e 31 contos em verso, de Adelina Lopes Vieira (1850-?), dos quais 17 são traduções de poemas do livro La comédie enfantine (Paris, 1861), do escritor francês Louis Ratisbonne (1827-1900). Essas traduções reafirmam um fenômeno que ocorre na ficção infantil brasileira no mesmo período: a tradução e a apropriação de modelos europeus.
        Em 1891, o livro Contos infantis é aprovado para uso das escolas públicas primárias, o que motiva uma segunda edição. Conforme o prefácio, ela “vai ilustrada com gravuras para maior aprazimento das crianças e com um pequeno questionário em seguida a cada conto”. Essa edição inicia, assim, uma parceria entre ilustração e poesia infantil que vem até os dias de hoje. O questionário depois de cada conto introduz um recurso típico dos livros didáticos até os dias de hoje, além de ser um precursor das atuais fichas de leitura, que acompanham os livros de literatura visando a incentivar sua circulação na escola. Contos infantis teve pelo menos 17 edições, até 1927, sucesso que se deve, pelo menos em parte, à sua aprovação oficial como livro de leitura escolar.
        Em 1897, o governo paulista publica o Livro das crianças, de Zalina Rolim (1869-1961), para distribuição nas escolas públicas do Estado de São Paulo. O Livro das crianças inverte a ordem predominante – ainda hoje – de produção de texto e ilustração: nele, todos os trinta poemas que o compõem foram escritos a partir de ilustrações. A ilustração tem função pedagógica: adiantar o assunto dos poemas, facilitando sua compreensão e auxiliando sua memorização. No prefácio ao Livro das crianças, Gabriel Prestes ressalta essa função pedagógica da ilustração, sugerindo que os alunos escrevam pequenas descrições a partir da observação das ilustrações.
        A relação entre poesia e ilustração não é redundante. O significado dos poemas se completa pela ilustração. Assim, por exemplo, em "Cuidados Maternais", a voz poética em primeira pessoa sugere uma mãe pensando em voz alta, preocupada em expor sua filha ao sol e ao vento, enquanto a ilustração que antecede o poema mostra uma menina brincando com uma boneca. O jogo entre poesia e ilustração revela uma compreensão sensível do faz-de-conta infantil, sem explicações desnecessárias.
        O poema "Uma Amiguinha" descreve um animal de estimação, mas esse animal só é identificado como gata na quinta estrofe. A ilustração que antecede o poema, contudo, já o identifica. Ainda que os poemas tenham sido escritos a partir das ilustrações, eles não se limitam a descrever o que aparece nas ilustrações, mas as extrapolam, como no poema "O Medo", sobre medo de escuro, a partir de uma ilustração que mostra duas meninas conversando.
        Apesar de as ilustrações serem as matrizes dos poemas, elas funcionam como catalisadoras e não como limitadoras. Ao mesmo tempo, os textos não se subordinam completamente às ilustrações, nem se referem a tudo o que nelas aparece, como a borboleta  na ilustração do poema "Uma Amiguinha", que não é mencionada no texto.
Apostando na leitura da imagem e no diálogo das linguagens verbal e visual, os poemas apresentam elipses que são completadas pelas ilustrações. Ou melhor, essas elipses são possíveis porque as ilustrações dão pistas para a compreensão dos poemas.
        O livro Poesias infantis (1904), de Olavo Bilac (1865-1918), é o best-seller do gênero na primeira metade do século XX, com 27 edições, até 1961. Bilac, que é reconhecido como o mais importante poeta parnasiano brasileiro, escreveu Poesias infantis, segundo suas próprias palavras, “para uso das aulas de instrução primária”, procurando compor “versos (...) sem dificuldade de linguagem”, sobre “assuntos simples”, visando “contribuir para a educação moral das crianças do seu país”.
        A partir de uma concepção contemporânea de poesia infantil, que prioriza o literário e não a “educação moral”, Olavo Bilac tem sido alvo de uma crítica talvez excessivamente severa, porque não leva em conta seus objetivos, sintonizados com os conceitos de criança, de ensino e de leitura da época, e o fato de o livro ter sido escrito, por encomenda, como livro de leitura escolar, não como literatura. Aliás, a identificação de “livros infantis” como “literatura infantil”, colocando sob um mesmo rótulo produtos muito diferentes, tem originado inúmeros equívocos de juízo crítico. Sobre este ponto, meu colega Ricardo Azevedo tem uma proposta de classificação dos livros infantis bastante esclarecedora.
        O livro O menino poeta (1943), de Henriqueta Lisboa (1904-1985), privilegia o lirismo, utilizando largamente a metáfora, afastando-se, assim, do descritivismo e da narratividade características de Olavo Bilac e da produção que o antecede, mas sem romper com o paradigma moral e cívico. Por outro lado, O menino poeta não foi publicado por editora de livros didáticos, nem trouxe prefácio recomendando sua leitura na escola. Dessa forma, o livro rompe com a circulação escolar, abrindo caminho para uma poesia infantil livre de compromissos pedagógicos.
        Sidónio Muralha (1920-1982), poeta português que se radicou no Brasil por motivos políticos, rompe com o paradigma moral e cívico no livro A televisão da bicharada (1962). Este livro introduz um novo paradigma para a poesia infantil brasileira, paradigma esse já esboçado em O menino poeta, de Henriqueta Lisboa, e que poderia ser denominado paradigma estético, por privilegiar o trabalho com a linguagem. No caso de Sidónio, esse trabalho com a linguagem s caracteriza pelo ludismo sonoro e o humor, ou seja, o jogo com a sonoridade, o ritmo, a música das palavras e a narração de breves cenas cômicas, como o título de seu livro sugere, envolvendo animais.
        O paradigma estético é consolidado por dois dos principais poetas modernistas brasileiros: Cecília Meireles (1901-1964) e Vinicius de Moraes (1913-1980). Cecília Meireles é reconhecida como uma das principais – senão a principal – voz feminina da poesia brasileira. Ela traz para a poesia infantil a musicalidade característica de sua poesia, explorando versos regulares, a combinação de diferentes metros, o verso livre, a aliteração, a assonância e a rima.
        Os poemas infantis de Cecília Meireles não ficam restritos à leitura infantil, permitindo diferentes níveis de leitura. A insatisfação com os limites e o desejo de plenitude estão presentes no poema “Ou Isto Ou Aquilo”, que dá título ao seu livro de poesia infantil, publicado em 1964.

        Vinicius de Moraes foi diplomata, dramaturgo, crítico de cinema e letrista, conhecido por suas parcerias com Tom Jobim, a mais famosa das quais, “Garota de Ipanema”. Desde 1960 seus poemas infantis circulam em antologias, mas só em 1970 eles são reunidos no livro A arca de Noé, provavelmente o mais conhecido livro de poesia infantil, no Brasil, na segunda metade deste século. Sua merecida popularidade decorre do jogo sonoro, da perspectiva infantil assumida pela voz poética, do humor, do aproveitamento de recursos típicos da poesia popular como a quadra, a redondilha e a rima nos versos pares, além da temática animal, um dos temas de maior empatia junto às crianças. Além desses motivos, internos aos próprios poemas, outra razão para sua popularidade é o fato de os poemas terem sido musicados por importantes compositores  brasileiros – Tom Jobim entre eles – e gravados em dois discos lançados em 1982.
 Um de seus poemas infantis mais conhecidos é “A Casa”, na verdade uma canção – com letra e música de Vinicius –, que transforma em estranho o conhecido: o poema desconstrói  – verso a verso – a noção de casa, construindo uma ausência muito engraçada.         Na produção dos últimos 15 anos, representada por autores como Sérgio Capparelli (n. 1947) e José Paulo Paes (1926-1998), há uma nítida preferência pelo humor, configurando o que poderia ser chamado paradigma lúdico. Esse paradigma lúdico enfatiza o ludismo sonoro e o humor, podendo ser sintetizado pelos versos “Poesia/é brincar com palavras”, de José Paulo Paes, ou pela afirmação de Maria da Glória Bordini de que “poesia é brinquedo de criança”, título do primeiro capítulo do seu livro Poesia infantil.
        A poesia infantil de Sérgio Capparelli apresenta duas vertentes: de um lado, uma vertente tradicional, caracterizada pela apropriação, estilização e paródia de formas e motivos da tradição oral e, de outro, uma vertente experimental, caracterizada pela utilização de recursos típicos da poesia concreta. Exemplo da vertente experimental é o poema “Jacaré Letrado”, composto de uma única palavra, jacaré, ou partes dela, repetida inúmeras vezes, em linhas em diagonal, formando a silhueta de um jacaré. O título “jacaré letrado” torna-se irônico ao se perceber que “letrado”, no caso, não quer dizer culto, erudito, mas apenas formado de letras.
        À margem dessa produção alegre e bem humorada, que circula nas escolas, alguns autores, ainda que sem se afastar completamente do humor, utilizam-no, contudo, com um sentido mais crítico, chegando, por vezes, a uma visão amarga do universo adulto. É o caso, por exemplo, de Leila Míccolis, poeta e autora de telenovelas, que tem incluído poemas infantis em seus livros para adultos, identificando-os sob as rubricas “Série Infantil” ou “Ciclo Infantil”. No poema “Segredo”, ela assume a persona de uma criança para criticar o mundo adulto.
          A poesia infantil européia existe enquanto gênero literário pelo menos desde meados do século XIX, por exemplo, desde A book of nonsense, de Edward Lear (1812-1888), publicado em 1845, ou mesmo antes, se pensarmos em Songs of innocence, de William Blake (1757-1827), publicado em 1789. A poesia infantil brasileira, ao contrário, manteve-se dependente da escola durante quase um século. Somente nos anos 40 é que surge um livro não comprometido com a circulação escolar e somente nos anos 60 é que a poesia infantil se liberta completamente dos compromissos escolares. A palavra completamente talvez seja um pouco exagerada12, já que, ainda hoje, a escola é a grande responsável pela circulação da literatura infantil e, no contexto brasileiro, a mediação familiar ainda é pouco significativa. Esse fato, sem dúvida, traz várias condicionantes à literatura, como, por exemplo, a confusão da literatura propriamente dita com obras que se utilizam da ficção e da poesia com finalidade educativa, seja de caráter informativo, seja para divulgar comportamentos e valores.
        Nesta década, o acervo de poesia infantil à disposição da criança brasileira foi enriquecido graças a traduções de autores russos, alemães, hebraicos, ingleses, entre outros, devidas aos poetas-tradutores Tatiana Belinky (n. 1919), José Paulo Paes e Sérgio Capparelli. Espero que o nosso encontro possa favorecer a ampliação desse acervo.
 

Nota:

1. Palestra apresentada no LAIS – Instituto Latino-americano –, da Universidade de Estocolmo, e no Instituto Sueco do Livro Infantil (neste último, em inglês), Estocolmo, Suécia, em outubro de 1999, junto com Ricardo Azevedo, que falou sobre “Literatura infantil brasileira hoje: alguns aspectos e problemas”.
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(*). Escritor e ilustrador de livros infantis, nascido em São Paulo, Brasil, em 1954. Desenvolve pesquisas sobre a poesia infantil no Brasil, tendo defendido dissertação de mestrado junto à Unicamp – Universidade de Campinas –, Campinas, Brasil, em 1998, com o título “Poesia infantil e ilustração: estudo sobre ‘Ou isto ou aquilo’ de Cecília Meireles”, além de ter publicado diversos artigos.
 

Página atualizada em  11 de fevereirro de 2000
 

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