A poesia infantil enquanto
gênero literário dirigido às crianças surge
no Brasil apenas no final do século XIX. Antes, o que existe são
poemas manuscritos, de circulação familiar, feitos de pai
ou mãe para os filhos, ou escritos em álbuns de meninas e
moças e, eventualmente, incluídos posteriormente nos livros
de seus autores junto a outros poemas não escritos para o leitor
infantil.
Dentre esses poemas, um
dos mais antigos é um soneto de Alvarenga Peixoto (c. 1744-1792),
mais conhecido por sua participação na Inconfidência
Mineira, frustrado movimento político que tentou tornar o Brasil
independente de Portugal, em 1789. Esse soneto inicia pelo vocativo
“Amada filha” e, diz a tradição, foi escrito quando sua filha
Maria Efigênia completou 7 anos (em torno de 1786). Nele, Alvarenga
Peixoto aconselha sua filha a desprezar a beleza, as honras e a riqueza,
cultivando a caridade, o amor a Deus e aos semelhantes. O soneto conclui
recomendando: “procura ser feliz na eternidade, que o mundo são
brevíssimos instantes”.
O acervo poético
de Alvarenga Peixoto é um pouco maior do que três dezenas
de poemas: na realidade, são conhecidos apenas 33 poemas seus. O
acervo conhecido de Bárbara Eliodora (1759-1819), sua mulher, é
ainda menor: conhece-se apenas um único poema, “Conselhos a Meus
Filhos”, que, como o título sugere, é uma coleção
de conselhos. Dentre eles, Bárbara Eliodora adverte que “a lição
não faz saber, quem faz saber é o pensar” e recomenda o estudo
das fábulas de Esopo.
Esses dois poemas – o soneto
de Alvarenga Peixoto e “Conselhos a Meus Filhos”, de Bárbara Eliodora
– apresentam um traço que será dominante na poesia infantil
brasileira até a primeira metade do século XX: a presença
de uma voz poética adulta, que se dirige a um leitor infantil, utilizando
o poema como veículo de educação moral.
No século XIX, poetas
como Gonçalves Dias (1823-1864) e Casimiro de Abreu (1839-1860)
escrevem alguns poemas dedicados a crianças, incluídos em
seus livros dirigidos ao leitor adulto. Afora essa produção
de poemas esparsos, que não tem intenção de configurar
o gênero poesia infantil, no final do século começam
a surgir antologias para utilização na escola.
Pode-se dizer, assim, que,
no Brasil, o gênero poesia infantil surge de braços dados
com a escola, visando principalmente a aprendizagem da língua portuguesa.
Não são os escritores que querem ampliar seu público,
escrevendo também para crianças, mas os professores que começam
a organizar e escrever antologias de textos em prosa e verso para utilização
como livros de leitura escolar.
Dentre esses organizadores
de antologias, um dos primeiros é o professor João Rodrigues
da Fonseca Jordão que, em 1874, publica o Florilégio brasileiro
da infância, reunindo poemas que não foram escritos originalmente
para o leitor infantil. O Florilégio está organizado por
tipos de poemas: sonetos, hinos, odes, baladas, elegias, epicédios,
sátiras, epigramas, alegorias, fábulas etc., organização
essa que reflete a importância dos estudos de retórica e poética
na educação brasileira no século XIX.
O antologista procurou,
segundo suas próprias palavras, ter "o maior cuidado em aproveitar
o que fosse estritamente acomodado ao entendimento e à sensibilidade
infantis", incluindo, assim, poemas que tematizavam a infância ou
escritos para crianças, como, entre outros, "Aos Anos de uma Menina",
de Sousa Caldas (1762-1814), "A uma Menina no Dia em que Fazia 15 anos",
de Domingos Borges de Barros (1780-1855) e "Preces da Infância",
de Gonçalves de Magalhães (1811-1882). Esses poemas, contudo,
conservam uma perspectiva adulta, visando à educação
moral.
A fim de favorecer sua circulação,
a página de rosto informava que o livro tinha sido aprovado, pelo
Governo Imperial, para uso das escolas públicas do ensino primário.
Observações como essa passam do Império à República,
repetindo-se ao longo do século XX. Em função desse
forte vínculo com a escola, até os anos 60, a poesia infantil
parece seguir um paradigma moral e cívico, aconselhando aos pequenos
leitores o bom comportamento e o civismo.
Provavelmente, o primeiro
livro de poesia infantil no Brasil seja Flores do campo, de José
Fialho Dutra (1855-?), publicado em Porto Alegre, em 1882. Mas, na realidade,
ele só pode ser assim considerado em função do seu
subtítulo, “poesias infantis”, pois os poemas não apresentam
características formais ou temáticas que indiquem preocupação
com o leitor infantil.
Em 1886, é publicado
o livro Contos infantis, reunindo 27 contos em prosa, de Júlia Lopes
de Almeida (1862-1934), e 31 contos em verso, de Adelina Lopes Vieira (1850-?),
dos quais 17 são traduções de poemas do livro La comédie
enfantine (Paris, 1861), do escritor francês Louis Ratisbonne (1827-1900).
Essas traduções reafirmam um fenômeno que ocorre na
ficção infantil brasileira no mesmo período: a tradução
e a apropriação de modelos europeus.
Em 1891, o livro Contos
infantis é aprovado para uso das escolas públicas primárias,
o que motiva uma segunda edição. Conforme o prefácio,
ela “vai ilustrada com gravuras para maior aprazimento das crianças
e com um pequeno questionário em seguida a cada conto”. Essa edição
inicia, assim, uma parceria entre ilustração e poesia infantil
que vem até os dias de hoje. O questionário depois de cada
conto introduz um recurso típico dos livros didáticos até
os dias de hoje, além de ser um precursor das atuais fichas de leitura,
que acompanham os livros de literatura visando a incentivar sua circulação
na escola. Contos infantis teve pelo menos 17 edições, até
1927, sucesso que se deve, pelo menos em parte, à sua aprovação
oficial como livro de leitura escolar.
Em 1897, o governo paulista
publica o Livro das crianças, de Zalina Rolim (1869-1961), para
distribuição nas escolas públicas do Estado de São
Paulo. O Livro das crianças inverte a ordem predominante – ainda
hoje – de produção de texto e ilustração: nele,
todos os trinta poemas que o compõem foram escritos a partir de
ilustrações. A ilustração tem função
pedagógica: adiantar o assunto dos poemas, facilitando sua compreensão
e auxiliando sua memorização. No prefácio ao Livro
das crianças, Gabriel Prestes ressalta essa função
pedagógica da ilustração, sugerindo que os alunos
escrevam pequenas descrições a partir da observação
das ilustrações.
A relação
entre poesia e ilustração não é redundante.
O significado dos poemas se completa pela ilustração. Assim,
por exemplo, em "Cuidados Maternais", a voz poética em primeira
pessoa sugere uma mãe pensando em voz alta, preocupada em expor
sua filha ao sol e ao vento, enquanto a ilustração que antecede
o poema mostra uma menina brincando com uma boneca. O jogo entre poesia
e ilustração revela uma compreensão sensível
do faz-de-conta infantil, sem explicações desnecessárias.
O poema "Uma Amiguinha"
descreve um animal de estimação, mas esse animal só
é identificado como gata na quinta estrofe. A ilustração
que antecede o poema, contudo, já o identifica. Ainda que os poemas
tenham sido escritos a partir das ilustrações, eles não
se limitam a descrever o que aparece nas ilustrações, mas
as extrapolam, como no poema "O Medo", sobre medo de escuro, a partir de
uma ilustração que mostra duas meninas conversando.
Apesar de as ilustrações
serem as matrizes dos poemas, elas funcionam como catalisadoras e não
como limitadoras. Ao mesmo tempo, os textos não se subordinam completamente
às ilustrações, nem se referem a tudo o que nelas
aparece, como a borboleta na ilustração do poema "Uma
Amiguinha", que não é mencionada no texto.
Apostando na leitura da imagem e no diálogo das linguagens verbal
e visual, os poemas apresentam elipses que são completadas pelas
ilustrações. Ou melhor, essas elipses são possíveis
porque as ilustrações dão pistas para a compreensão
dos poemas.
O livro Poesias infantis
(1904), de Olavo Bilac (1865-1918), é o best-seller do gênero
na primeira metade do século XX, com 27 edições, até
1961. Bilac, que é reconhecido como o mais importante poeta parnasiano
brasileiro, escreveu Poesias infantis, segundo suas próprias palavras,
“para uso das aulas de instrução primária”, procurando
compor “versos (...) sem dificuldade de linguagem”, sobre “assuntos simples”,
visando “contribuir para a educação moral das crianças
do seu país”.
A partir de uma concepção
contemporânea de poesia infantil, que prioriza o literário
e não a “educação moral”, Olavo Bilac tem sido alvo
de uma crítica talvez excessivamente severa, porque não leva
em conta seus objetivos, sintonizados com os conceitos de criança,
de ensino e de leitura da época, e o fato de o livro ter sido escrito,
por encomenda, como livro de leitura escolar, não como literatura.
Aliás, a identificação de “livros infantis” como “literatura
infantil”, colocando sob um mesmo rótulo produtos muito diferentes,
tem originado inúmeros equívocos de juízo crítico.
Sobre este ponto, meu colega Ricardo Azevedo tem uma proposta de classificação
dos livros infantis bastante esclarecedora.
O livro O menino poeta (1943),
de Henriqueta Lisboa (1904-1985), privilegia o lirismo, utilizando largamente
a metáfora, afastando-se, assim, do descritivismo e da narratividade
características de Olavo Bilac e da produção que o
antecede, mas sem romper com o paradigma moral e cívico. Por outro
lado, O menino poeta não foi publicado por editora de livros didáticos,
nem trouxe prefácio recomendando sua leitura na escola. Dessa forma,
o livro rompe com a circulação escolar, abrindo caminho para
uma poesia infantil livre de compromissos pedagógicos.
Sidónio Muralha (1920-1982),
poeta português que se radicou no Brasil por motivos políticos,
rompe com o paradigma moral e cívico no livro A televisão
da bicharada (1962). Este livro introduz um novo paradigma para a poesia
infantil brasileira, paradigma esse já esboçado em O menino
poeta, de Henriqueta Lisboa, e que poderia ser denominado paradigma estético,
por privilegiar o trabalho com a linguagem. No caso de Sidónio,
esse trabalho com a linguagem s caracteriza pelo ludismo sonoro e o humor,
ou seja, o jogo com a sonoridade, o ritmo, a música das palavras
e a narração de breves cenas cômicas, como o título
de seu livro sugere, envolvendo animais.
O paradigma estético
é consolidado por dois dos principais poetas modernistas brasileiros:
Cecília Meireles (1901-1964) e Vinicius de Moraes (1913-1980). Cecília
Meireles é reconhecida como uma das principais – senão a
principal – voz feminina da poesia brasileira. Ela traz para a poesia infantil
a musicalidade característica de sua poesia, explorando versos regulares,
a combinação de diferentes metros, o verso livre, a aliteração,
a assonância e a rima.
Os poemas infantis de Cecília
Meireles não ficam restritos à leitura infantil, permitindo
diferentes níveis de leitura. A insatisfação com os
limites e o desejo de plenitude estão presentes no poema “Ou Isto
Ou Aquilo”, que dá título ao seu livro de poesia infantil,
publicado em 1964.
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
E vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
Nota:
1. Palestra apresentada no LAIS – Instituto Latino-americano
–, da Universidade de Estocolmo, e no Instituto Sueco do Livro Infantil
(neste último, em inglês), Estocolmo, Suécia, em outubro
de 1999, junto com Ricardo Azevedo, que falou sobre “Literatura infantil
brasileira hoje: alguns aspectos e problemas”.
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(*). Escritor e ilustrador de livros infantis, nascido
em São Paulo, Brasil, em 1954. Desenvolve pesquisas sobre a poesia
infantil no Brasil, tendo defendido dissertação de mestrado
junto à Unicamp – Universidade de Campinas –, Campinas, Brasil,
em 1998, com o título “Poesia infantil e ilustração:
estudo sobre ‘Ou isto ou aquilo’ de Cecília Meireles”, além
de ter publicado diversos artigos.