BIOGRAFIA E CORRUPÇÃO

 
Gilberto Mendonça Teles (*)
 
                Georges Gusdorf,  no segundo volume de suas Linhas de Vida, intitulado Auto — bio — graphie, explica que a decomposição desse vocábulo  põe em relevo três temas (ou raízes) que estruturam a sua tripla significação de "autobiografia",  de "biografia" e de "escrita" que vale por si mesma, como forma  de uma linguagem que se equilibra entre o ensaio e a ficção.  O "auto" é a escrita de um eu consciente de si mesmo, de um sujeito que se fez ao longo de uma existência, tida como especial; o "bio" é o percurso vital, as modificações que se verificam  dentro de uma identidade que se vai constituindo; e a "grafia" é a possibilidade de se retraçar  essa vida a partir de determinado ponto, o lugar de uma reconstrução pela linguagem.
                 Assim, o biógrafo situa-se num entrelugar que tem, de um lado, a tensão que se estabelece entre o sujeito e seu mito;  e, de outro, entre o sentido da pesquisa e a escrita que deseja representar um estilo de vida. Daí ser preciso que o biógrafo, ao "limpar o lado de dentro", não expulse do biografado "todos" os seus defeitos nem realce demasiado as suas "qualidades". Que ele saiba fazer, não só o pacto autobiográfico como queria Lejeune, mas uma relação entre a verdade e a verossimilhança e que esteja mais próximo da realidade documental do que da imaginação criadora.
                  Se na Antiguidade a biografia tinha o objetivo de ilustrar uma tese política (Plutarco, Suetônio) e na Idade Média o de dar relevo à vida dos santos e aos atos da realeza, a partir da Reforma, que faz aumentar a literatura imaginativa e leva o espírito contemplativo para fora da igreja,  a biografia adquire a função de realçar a vida do indivíduo, fazendo aumentar o valor do material biográfico, como cartas, diários, memórias, bulas, tratados — documentos que fizeram desenvolver uma nova forma de biografia íntima em que o século XVIII vai imprimir tanto o sentimento popular como o espírito científico;  e o século XIX, levando a interpretação para além das datas e dos fatos exteriores, vai conduzir para a visão de que os valores do subconsciente é que governam a vida.  Fácil foi, por aí,  chegar-se à noção de "biografia artística" que domina os melhores estudos biográficos dos últimos tempos.
             A técnica dessa "biografia artística", que às vezes escamoteia o  biográfico e impinge gato por lebre na pretensão artística, é a de relativizar o conceito de verdade documental e pôr em evidência a autonomia da verdade estética, deixando-se o biógrafo influenciar pelas várias formas de literatura de ficção. Parece que o  objetivo é "criar a ilusão de uma vida tal como foi vivida". Para isso, empregam-se os recursos da retórica narrativa — solilóquio, diálogo imaginado, seleção, realce e acumulação de materiais e contextos diferentes, com muitas  personagens secundárias, para transformar fatos cinzentos e empoeirados  num simulacro de vida afetiva e real, com todas as suas mutações  de pensamento e de estados de ânimo, recordações e esperanças.  E sua estrutura e seu  estilo são tratados como se fossem o de uma novela ou de um drama. Neste sentido, a biografia  quer ser arte e não um ramo da história. E nisto ela depende do talento, tanto do pesquisador como do biógrafo escritor.
Isto vem a propósito do livro Gonzaga, um poeta do Iluminismo, que no release da editora aparece como "um olhar totalmente original sobre Gonzaga" e como a "primeira biografia do poeta".   Mas  não  é  bem  assim,  porque o que se pensa original  pode ser um equívoco; e quanto a ser a primeira, é só ver que grande parte de suas informações são extraídas dos livros de Rodrigues Lapa, como está aliás assinalado na bibliografia. Não resta dúvida, porém,  de  que se trata de um trabalho sério sobre a vida de Tomás Antônio Gonzaga, que reconstitui com bastante fidelidade e verossimilhança o quadro histórico da Vila Rica e da Ilha de Moçambique nas duas décadas finais do século XVIII. Uma investigação digna de louvor, quaisquer que sejam as observações que lhe fazemos a seguir.
Usamos acima a expressão "fidelidade e verossimilhança" para dizer que a biografia escrita por Adelto Gonçalves olha firme e bem para os documentos históricos, mas não deixa de piscar maliciosamente para a ficção, esforçando-se por situar-se no plano de uma "biografia artística", tal como a descrevemos acima. O pesquisador quer ser verdadeiro, mas diante da falta de documentos exatos, entra em cena o "ficcionista" para suprir as lacunas. Daí a grande quantidade de "talvez" e de expressões vagas e  sinônimas que atravessam todo o livro, como: "Deve ter sido numa dessas viagens", ''É possível que estivesse", "É de imaginar", "É provável", "parece", "O próprio ministro seria maçon", "ao que se sabe", "denunciado à Inquisição possivelmente" e tantas outras,  além do "talvez" que aparece nas páginas 24, 28,56, 57, 93, 96,  até onde contamos. E olhe que o livro tem 538 p. É claro que tais incertezas e vacilações retiram um pouco da credibilidade do texto e leva o leitor a desconfiar de afirmações pessoais não comprovadas.
Percebe-se inicialmente uma má vontade do autor com relação a Gonzaga: em vez de "limpar por dentro" como ensina Gusdorf, a tese insiste em que ele se deixou levar por pequenos favores familiares e administrativos, embora seja de Gonzaga a frase mais importante do livro: "Esta Colônia um dia se tornará independente, mas dificilmente se livrará de seu passado de corrupção". Levanta problemas de somenos importância como o da amante do poeta, assim como se enrola na elucidação de seu parentesco, no Porto. O que seria realmente importante era ter conseguido também alguns textos originais, manuscritos, de liras e de outros poemas de Gonzaga, principalmente os escritos na África. Mas, como já afirmamos, a biografia se preocupa apenas com o contexto histórico, esquecendo quase por completo o contexto literário. E o Iluminismo, apesar de estar no subtítulo da obra, aparece ali como Pilatos no credo. Não se examinou literariamente o sentido iluminista da obra de Gonzaga. O livro de Adelto Gonçalves tem, aliás, o mérito de refletir os nossos dias, tanto que está mais preocupado com a "corrupção" de Gonzaga do que com  o valor literário e a importância de sua obra para a formação da literatura brasileira,
 Como se trata de uma tese acadêmica — Doutorado em Letras na USP e, portanto, com muitas, demasiadas notas, uma bibliografia como sempre discutível  (e sem um índice onomástico indispensável em livros de tal natureza) — o sujeito da história, diante do grande número de informações, parece menor que os fatos e acaba enredando o leitor paciente numa série de datas, nomes e digressões que mais parece esconder que desenhar a personagem biografada.
 O autor procura recompor a vida de Gonzaga em três momentos: na sua fase de formação em Portugal e no Brasil (Porto, Olinda, Recife, Bahia, Rio de Janeiro; novamente Porto, Coimbra, Lisboa e Beja); no seu tempo áureo de Ouvidor em Vila Rica, o qual  se estende ao da prisão no Rio de Janeiro; e, finalmente, no seu  período de glorioso desterro em Moçambique. Não resta dúvida de que soube se valer de muitos documentos de ordem administrativa, numa pesquisa que abre perspectivas para outras interpretações. A documentação entretanto, não raras vezes, desvia o leitor da esfera do biografado para uma série de personagens secundárias, em digressões que, se servem para compor o contexto histórico, servem também para fugir ao tema central — a vida de Gonzaga e de sua obra.
Mas o curioso é que, em se tratando  de uma tese de Letras, sobre um autor cuja importância vem de ter sido um dos melhores poetas, lírico e satírico, do século XVIII e que por motivos de sua formação intelectual e do conhecimento da má administração da Colônia, acaba aderindo ao movimento da inconfidência mineira, o autor da biografia tenha preferido configurar um contexto histórico-administrativo, desdenhando por completo o contexto literário, a ponto de não aparecer na sua bibliografia as obras coletivas mais importantes do século XVIII, como a Fênix Renascida (em 5 v.) e O Postilhão de Apolo (em 2 v.). Mesmo que ali não apareçam poemas de Gonzaga, é fora de dúvida  que o poeta as conhecia, no seu tempo do Porto, de Coimbra e de Lisboa. E, apesar de fazer uma rápida referência à criação da Academia Brasílica dos Renascidos, não consultou (pelo menos não se encontra na bibliografia) a monumental edição de O Movimento Academicista no Brasil (1641-1822), publicada por José Aderaldo Castello, em 14 v. O resultado disto é que a biografia pouco trás de contribuição ao melhor conhecimento da poesia lírica de Gonzaga. E quanto à sua parte satíritica, esta foi simples e ingenuamente tomada como documento "histórico", ignorando-se a força imaginária das Cartas Chilenas e tomando-se ao pé da letra, como realidade histórica, o que se revestia primeiro de ambigüidade simbólica e, por isso mesmo, poderia estar dizendo muito mais do que uma simples descrição dos costumes e da corrupção portuguesa na Colônia brasileira.

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(*) Poeta, crítico e professor de Literatura Brasileira na PUC-RJ
 

Página atualizada em  06 de julho de 2000

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