CONTO EM LÁ MENOR (*)
Joaquim Branco


            Não chega a ser obsessivo, mas pode-se dizer que a música  é um tema recorrente na obra de Machado de Assis.
            Ora é na forma de um piano que o personagem toca; ora o machete (espécie de cavaquinho), ou mais genericamente uma melodia que perpassa e colore o ambiente onde os personagens “vivem”.
            Isso pode-se constatar no conto “Cantiga de esponsais”, em que a obsessão de um virtuose toma a narrativa por inteiro, ou em “Marcha fúnebre”, em que um personagem simplesmente assobia uma polca ao atravessar uma rua; ou em “Trio em lá menor”, que enfocamos aqui.
            E o autor começa pelo título:  trio –  trecho musical próprio para três vozes ou instrumentos. Acrescente-se, o conto divide-se em quatro partes, como num trio ou numa sonata, assim denominadas: I - Adagio cantabile; II - Allegro ma non troppo; III - Allegro appassionato; e IV - Menuetto.
            Chama-se adágio ao andamento musical lento, vagoroso, pausado; alegro, ao  trecho musical em andamento animado; e  minueto é a terceira parte dos quatro movimentos de uma sonata.
            Assim, na primeira parte, Adagio cantabile, esboçam-se os personagens da trama: Maria Regina, o personagem central; sua avó (sem nome) e os dois namorados, Maciel, de 27 anos; e Miranda, de 50 anos. No desenvolvimento da estória, a moça forma um estranho triângulo amoroso com os dois pretendentes. Assim, a palavra trio funciona duplamente, pois também sugere a existência desse  triângulo.
            Começa a estória com esse esboço. Uma sonata leva Maria Regina ao piano. Dois pretensos namorados chegam. A avó cochila, um personagem que se esconde, à maneira de Machado.
            Mais tarde, a noite é feita das reflexões da moça, que refaz o novelo do dia e revê os namorados entre o sonho e a névoa. Aparece imediatamente o disfarce citado por Antonio Candido em seu estudo (“Vários escritos”), e que serve para introduzir a personalidade meio complicada ou estranha do personagem principal do conto. Essa atmosfera domina a narração, em contraponto com a sonata,  despontando em alguns pontos, e até no final.
            No 2º capítulo, Allegro ma non troppo, e no 3º, Allegro appassionato, desenvolve-se a narrativa em que os namorados são apresentados com suas falhas e qualidades.
            O capítulo termina ao piano. A sonata –  o trio – desperta uma espécie de introspecção (quase monólogo interior) da moça, que compõe uma figura na mente feita das afinidades mentais com Miranda e da juventude e meiguice de Maciel.  Machado fecha o capítulo com Shakespeare.
            No último capítulo – Menuetto – passa o tempo. Maria Regina se descarta de ambos. Acentua-se pela mão do narrador  a tendência da moça para as esquisitices, quando de repente ela se interessa por uma notícia de jornal sobre a existência de “estrela duplas que nos parecem um só astro”.
            A partir daí, Machado de Assis abre para um dos seus temas preferidos: a imperfeição humana, o problema existencial:
            “Quando abriu os olhos e viu que o firmamento ficava tão alto, concluiu que a criação era um livro falho e incorreto, e desesperou”  (p. 324)
            O conto então vai terminando com uma série de superposições de imagens, começando pelas estrelas, passando por dois olhos de gato (no muro), impressões da retina, duas rodelas de opala (na parede), para terminar em dois astros incompletos. Imagens visuais leves, quase cinematográficas, de uma plasticidade nunca vista antes.
            E a sonata acaba por envolver completamente a narração, como uma sombra, até se dissolver na “sonata do absoluto” – como Machado a chama – “lá, lá, lá...”. (p. 325)

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(*) Do livro: "Contos: uma antologia, Machado de Assis", org. p/ John Gledson, Companhia das Letras, SP, 1998, enviado para Blocos on line, em 04/03/2001 pelo autor.
 

Página atualizada em  07 de março de 2001

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