Não chega a ser obsessivo, mas pode-se dizer que a música
é um tema recorrente na obra de Machado de Assis.
Ora é na forma de um piano que o personagem toca; ora o machete
(espécie de cavaquinho), ou mais genericamente uma melodia que perpassa
e colore o ambiente onde os personagens “vivem”.
Isso pode-se constatar no conto “Cantiga de esponsais”, em que a obsessão
de um virtuose toma a narrativa por inteiro, ou em “Marcha fúnebre”,
em que um personagem simplesmente assobia uma polca ao atravessar uma rua;
ou em “Trio em lá menor”, que enfocamos aqui.
E o autor começa pelo título: trio – trecho musical
próprio para três vozes ou instrumentos. Acrescente-se, o
conto divide-se em quatro partes, como num trio ou numa sonata, assim denominadas:
I - Adagio cantabile; II - Allegro ma non troppo; III - Allegro appassionato;
e IV - Menuetto.
Chama-se adágio ao andamento musical lento, vagoroso, pausado; alegro,
ao trecho musical em andamento animado; e minueto é
a terceira parte dos quatro movimentos de uma sonata.
Assim, na primeira parte, Adagio cantabile, esboçam-se os personagens
da trama: Maria Regina, o personagem central; sua avó (sem nome)
e os dois namorados, Maciel, de 27 anos; e Miranda, de 50 anos. No desenvolvimento
da estória, a moça forma um estranho triângulo amoroso
com os dois pretendentes. Assim, a palavra trio funciona duplamente, pois
também sugere a existência desse triângulo.
Começa a estória com esse esboço. Uma sonata leva
Maria Regina ao piano. Dois pretensos namorados chegam. A avó cochila,
um personagem que se esconde, à maneira de Machado.
Mais tarde, a noite é feita das reflexões da moça,
que refaz o novelo do dia e revê os namorados entre o sonho e a névoa.
Aparece imediatamente o disfarce citado por Antonio Candido em seu estudo
(“Vários escritos”), e que serve para introduzir a personalidade
meio complicada ou estranha do personagem principal do conto. Essa atmosfera
domina a narração, em contraponto com a sonata, despontando
em alguns pontos, e até no final.
No 2º capítulo, Allegro ma non troppo, e no 3º, Allegro
appassionato, desenvolve-se a narrativa em que os namorados são
apresentados com suas falhas e qualidades.
O capítulo termina ao piano. A sonata – o trio – desperta
uma espécie de introspecção (quase monólogo
interior) da moça, que compõe uma figura na mente feita das
afinidades mentais com Miranda e da juventude e meiguice de Maciel.
Machado fecha o capítulo com Shakespeare.
No último capítulo – Menuetto – passa o tempo. Maria Regina
se descarta de ambos. Acentua-se pela mão do narrador a tendência
da moça para as esquisitices, quando de repente ela se interessa
por uma notícia de jornal sobre a existência de “estrela duplas
que nos parecem um só astro”.
A partir daí, Machado de Assis abre para um dos seus temas preferidos:
a imperfeição humana, o problema existencial:
“Quando abriu os olhos e viu que o firmamento ficava tão alto, concluiu
que a criação era um livro falho e incorreto, e desesperou”
(p. 324)
O conto então vai terminando com uma série de superposições
de imagens, começando pelas estrelas, passando por dois olhos de
gato (no muro), impressões da retina, duas rodelas de opala (na
parede), para terminar em dois astros incompletos. Imagens visuais leves,
quase cinematográficas, de uma plasticidade nunca vista antes.
E a sonata acaba por envolver completamente a narração, como
uma sombra, até se dissolver na “sonata do absoluto” – como Machado
a chama – “lá, lá, lá...”. (p. 325)
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(*) Do livro: "Contos: uma antologia, Machado
de Assis", org. p/ John Gledson, Companhia das Letras, SP, 1998, enviado
para Blocos on line, em 04/03/2001 pelo autor.