O CAMINHO DAS PEDRAS NA POESIA LUSO-BRASILEIRA 1
Maria das Graças Ferreira


            O desconhecido sugere um espaço, ou algo (cercado de perigos) no qual o homem aventura-se sob pena de sofrer punições terríveis. Não foi à toa que o poeta Sófocles (Século V, A.C) pôs uma pedra no meio do caminho do Rei Édipo. Este, sabiamente,  devorou os enigmas 2 de uma monumental Esfinge (grifo nosso); pois cabe ao poeta, desde sempre,  criar e correr todos os riscos; ousar.
            Postura semelhante deu-se com um poeta do Renascimento (século XVI) que salvou, a nado,  um livro para mostrar ao mundo a força do seu Lusíadas; sobretudo no V Canto onde impera um personagem extrusivo, desses que saem de dentro da terra e entram pelo mar para atormentar os que se atrevem em desbravar “os mares nunca dantes navegados”. Assim é Adamastor 3: gigante de pedra (grifo nosso), capitão do mar que surge no meio do caminho de Vasco da Gama em sua viagem para às Índias. E o homem diz à pedra: “Quem és tu? Que esse estupendo / Corpo, certo me tem maravilha!” 4 . A pedra, com voz pesada e amarga responde ao homem:

“— Eu sou aquele oculto e grande cabo 5
A quem chamais vós outros Tormentório

Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo 6,
Plínio 7 e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a africana costa acabo
Neste meu nunca visto promotório,
Que para o pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende!8

Fui dos filhos aspérrimos da Terra
Qual Encélado, Egeu e o Centimano9 ;
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Não que pusesse serra sobre serra,
Mas conquistando as ondas do oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Netuno, que eu buscava10.”
            O sentimento que invadiu a tripulação de Vasco da Gama acompanha “o homem do leme”; uma performance de El-Rei D. João Segundo, em Mensagem (um épico em três partes, escrito em agosto de 1918) de Fernando Pessoa. A segunda parte dessa epopéia dos tempos modernos avisa aos navegantes que há um Mostrengo (grifo nosso) no meio do caminho, agitando o  “Mar português” que o homem do leme (representando o povo) diz que é seu:
 
“O MOSTRENGO que no fim do mar
na noite de breu ergueu-se a voar:
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, ‘Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?’
E o homem do leme disse, tremendo,
‘El-Rei D. João Segundo!’

‘De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?’
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso
[...]

E disse no fim de tremer três vezes,
‘Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quere o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João  Segundo!11

            Que as pedras se encontrem parece normal. Todavia, ainda causa estranhamento um caso que seu deu em Minas; quando, por volta de 1930, o poeta Carlos Drummond de Andrade agitou o cenário da Literatura Brasileira com o poema  no meio do caminho (grifo nosso), em Alguma Poesia (seu livro de estréia):
“No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.”12

            Na visão de Massaud Moisés (1971), esse poema inclina-se para  o cotidiano, o humor e  o transcendental  “da superfície opaca da realidade diária” e expõe, de modo flagrante, “a gravidade tensa de ‘retinas tão fatigadas’ auscultando a monotonia inexorável, a que se reduz a tragédia da própria condição humana ”13 . A pedra em Drummond não é um “claro enigma”14 , mas algo que se traduz através do coração mais vasto que o mundo. Tão enigmático, quanto provocativo o referido poema  atormentou muitos leitores na época em que  foi escrito. Tanto inquietou que o próprio poeta reuniu em livro  uma série de comentários e releituras elogiosas e não elogiosas a sua pedra de recorte modernista, com o seguinte título: Uma pedra no meio do caminho: biografia de um poema.
            A pedra que angustia o ser enquanto poeta, a ponto de causar-lhe uma sensação inesquecível, aparece de forma gloriosa no fado “Os Argonautas15 ,  de Caetano Veloso. Inspirado no espírito dos antigos marinheiros e à maneira de Pessoa e Drummond,  Caetano Veloso fala  do sentimento do mundo  que o acompanha. Com efeito, eis que ressurge ora do meio das águas, ora de dentro da terra;  algo que atormenta o poeta:
“O barco, meu coração não agüenta
Tanta tormenta
Alegria, meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não

Navegar é preciso
Viver não é preciso

[...]

O barco, o automóvel brilhante
O trilho solto o barulho
Do meu dente em tua veia
O sangue, o charco, o barulho lento
O porto, silêncio.

            Maldito, “Gauche”, Fingidor,  Louco, Oculto, Lutador: assim é  o poeta, um eterno insatisfeito. O seu normal reside num querer para si o espírito do “navegar preciso”, como quer o provérbio antigo; daí, o imperativo da leitura e da escrita; do ousar sempre o desconhecido.
 

Notas:
1 Comunicação para o I Encontro de Literatura: De Portugal à Palmares, FAMASUL, de 4 a 5 de junho/99.
“A Édipo a Esfinge perguntou que animal anda de manhã sobre quatro pés, sobre dois pés durante o dia e sobre três à noite. Ele respondeu que era o homem, pois engatinhava na infância, aprumava-se ao depois e, quando velho, se apoiava em um bordão. Destruíra, assim,  o poder do monstro, que se precipitou num despenhadeiro e morreu”. Cf. Teatro Grego. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 45,. Uma tradução direta do Grego por Jaime Bruna.
3  Virgílio, na Eneida, refere-se a Adamastus e Homero, na Ilíada, a Damastor.
4   Luiz  de Camões, Lusíadas,. São Paulo: Cultrix, 1982, Canto V – 49, p.152.
  Cabo das Tormentas,  depois chamado Cabo da Boa Esperança.
  Claudio Ptolomeu: astrônomo grego; Pompônio: geógrafo romano e Estrabo:geografo grego.
  Caio Plínio Segundo, autor da Naturalis História; espécie de enciclopédia da ciência da Antiguidade.
  Luiz  de Camões, Op. Cit. Canto V – 50, p.152.
9   Encélado, Egeu e Centimano:  gigantes, filhos da terra que tentaram escalar o céu e expulsar Júpiter;
10  Luiz  de Camões, Op. Cit. Canto V – 51,
11  Fernando Pessoa. Mensagem , 3ª ed. in: Obra Poética. Rio de Janeiro: Agir, 1986, p. 79-80.
12  Carlos Drummond de Andrade. Reunião/ Alguma Poesia/. 3ª  ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1987,  p. 15.
13  Massaud Moisés. A literatura brasileira através dos textos.  São paulo: Cultrix, 1971, p. 417.
14  Uma alusão ao livro do mesmo nome, que  Drummond publicou  pela  José  Olympio, em 1951.
15  Álbum “Caetano e Chico juntos ao vivo”, Polygram.

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A autora é Doutoranda em Teoria da Literatura e Professora de Literatura Brasileira na UFPE.
 

Página atualizada em  24 de março de 2001

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