A vida cultural consiste em elaboração de discursos, sistemas
de representação e estruturação da experiência,
estes os mais diversos e múltiplos, em função do matiz
da experiência que representam, subsistindo em um processo contínuo
de reelaboração. Os discursos não sobrevivem imaculados
e isolados uns dos outros, há uma constante influência, interação,
que os enriquece mutuamente, uma permuta que permite um fluxo de experiência
desde níveis menos abstratos, até discursos eminentemente
formais. A melhor imagem que pode sugerir o que ocorre no seio da vida
cultural é o da teia, este ícone representa o emaranhado
de formas e combinações de fios e nos de discursos especializados
na representação, estruturação e manipulação
da experiência; a cultura, como um todo, é uma enorme rede,
com vários níveis, de apreensão da experiência.
É a experiência que alimenta a ação dos signos
(semiose) , uma ação triádica e irredutível.
Este processo caracteriza-se basicamente pela tradução de
um signo em outro, com o crescimento contínuo da experiência
do objeto, ad infinitum. Como a experiência dos objetos não
é unívoca, os signos também não o são,
sendo o discurso a espécie sígnica mais rica porque mais
complexa em sua veiculação de experiência. Os discursos
são signos declaradamente culturais (nem todos os signos são),
são quanto a sua forma lógica dotados de premissas e conclusão,
o que irá variar será o grau de credibilidade que une premissas
e conclusão. Pensando a vida cultural como um sistema inteligente
( o que ela realmente é), podemos identificar três instâncias
bem distintas, mas indissociáveis. Chamaremos de: módulo
de percepção (1); módulo de resolução
(2); e módulo de ação (3). A percepção
está na base do fenômeno de cognição, é
a matéria que a alimenta, é o plano no interior do qual a
cognição se processa. Se é verdade que não
existe cognição sem signo, é verdade também
que esta inicia-se com a percepção. Este é o módulo
que está na base da inteligência, delimitando a sua esfera
de cognição, e na vida cultural consiste em uma de suas matrizes
básicas, expressa pelo discurso poético. O módulo
de resolução trata da fixação ou dissolução
de crenças, é o campo conceitual e abstrato, expressa-se
culturalmente através do discurso epistemológico (dialético
e lógico-analítico). Já o módulo de ação
tem a função de indicar a compatibilidade ou não de
uma crença com os imperativos do meio no interior do qual o sujeito
se move, o módulo de ação orienta a adaptabilidade
do sujeito, na vida cultural é expresso pelo discurso retórico.
A vida cultural, portanto, (partindo deste modelo de organização
da inteligência) pode ser reduzida em sua complexidade a três
matrizes básicas, das quais os demais discursos são variantes.
Uma teoria da cultura que se proponha a pensar a cultura como um sistema
de comunicação e padrões de representação,
não pode se limitar a identificar e classificar formas sígnicas,
embora seja este o passo inicial, mas também descrever o processo
de elaboração destas formas sígnicas. Portanto este
balanço se sabe incompleto, como não poderia deixar de ser,
pois a cultura está em franca elaboração.
2. Cognição: a dimensão sígnica.
Na natureza constata-se a existência de duas ações
básicas, segundo Peirce: ação mecânica;
e ação inteligente. A ação mecânica
é uma ação diádica, uma interação
redutível a pares, ação e reação. A
ação inteligente é triádica, é necessariamente
mediada, irredutível à solução entre pares,
processando-se na dimensão sígnica. O que efetivamente distingue
a ação mecânica da inteligente é a intencionalidade,
extraindo-se daí um conceito de inteligência; como sendo todo
e qualquer processo controlável e dirigido a um fim. Assim o conceito
de inteligência não se restringe ao cérebro humano,
a mediação pode desenvolver-se em outros meios físicos.
A cognição neste quadro é uma ação
inteligente, é um fenômeno mediado, deste modo indissociável
da ação do signo, a cognição como um processo
é controlável e intencional, também constatável
fora do cérebro humano, em outros meios que simulem as condições
ideais. A percepção está na base da cognição,
é da massa amorfa de percepções do sujeito (me restrinjo
agora a cognição humana) em um nível primário
e imediato que se processa a organização e identificação
de padrões no caos perceptivo, esta elaboração de
uma morfologia da percepção já implica em um certo
grau de abstração, envolvendo signos aparelhados para a representação
de tal tipo ou matiz de experiência, os ícones estão
na base mais elementar de cognição, signos essenciais na
representação de imagens e impressões pictóricas
(os ícones não se restringem somente a isto), estes padrões
se justapõem em um grau crescente até a elaboração
conceitual, signos caracterizados pela incapacidade de comunicação
por si sós, estritamente formais, carecem de conteúdo, são
como diz Peirce, signos de lei, de comportamento futuro previsível,
porque convencionais. O índices, signos que interagem fisicamente
com os objetos, são circunstanciais e apontam para a realidade em
um dado momento, preenchendo o vazio de conteúdo dos conceitos,
conferindo-lhes poder de comunicação (poder que os ícones
também possuem). A percepção portanto constitui-se
em um nível elementar de cognição, merecendo este
rótulo quando o sujeito a percebe como tal, o que indica já
a presença da mediação sígnica. A cognição
portanto não se dá em um ato, mas se constitui em um processo
mediado por várias espécies sígnicas. O que será
abordado neste pequeno escrito é o papel da poética na elaboração
de sistema de conceitos.
3. Da poética.
A poética é a categoria que trata do “módulo de percepção” , sendo o discurso poético incrivelmente múltiplo e flexível, de certo é dentre todas as formas discursivas a mais livre e expressiva, o discurso poético manifesta-se através das artes plásticas, música, poesia, drama, narrativa de ficção(romance, novela, conto), dança, arquitetura, cinema, fotografia, etc. A poética caracteriza-se pela ausência de regras fixas e castradoras, é livre porque não comporta um elevado grau de abstração, é a categoria da liberdade criativa. A estética é uma ciência normativa que identifica formas e padrões de percepção, filosoficamente é orientada pelo valor do belo, sendo o veículo corrente na vida cultural, dos estímulos e percepções poéticas, o discurso poético (que se especializa nas mais variadas experiências estéticas). O que efetivamente caracteriza o discurso poético e o particulariza das demais espécies discursivas? Sob a perspectiva lógica o mais baixo grau de credibilidade que une as premissas a conclusão; ou em linguagem poética, a experiência poética pregressa e a posterior assimilada. Sob um prisma formal, seria a quase total ausência de forma, daí a impressão de liberdade que a contemplação de um quadro ou fruição de uma música nos suscita. Já sob o enfoque da experiência veiculada, caracteriza-se por ser a forma discursiva que representa a experiência mais direta e sensual possível (sensual no sentido de estímulos sensórios). O discurso poético é o discurso que alimenta a capacidade humana de sensibilizar-se, suscitando a mais infindável variedade de emoções, deve ser o instrumento básico da pedagogia humanista. Este discurso não passa pelo crivo da racionalidade, é o menos controlável dos discursos, explora as potencialidades do inconsciente, do absurdo, daí certamente ser o mais revolucionário dos discursos, pois subverte a lógica preestabelecida, por subverter a razão é essencialmente intuitivo, direto, e por conseqüência o menos delimitável, definível. A experiência estética é o seu conteúdo, sendo o seu conteúdo irredutível a problematização, conceitos como verdadeiro e falso lhes são indiferentes. A única intencionalidade que o rege é o valor do belo, é isto que nos seduz em um filme, romance, etc.
4. A função do discurso poético.
O discurso poético é dentre todos o mais vital, pois delimita
a esfera de mobilidade da ação cognitiva, está a estética
na base de toda e qualquer especulação, as dimensões
ética e lógica bebem de sua fonte, os gregos já afirmavam
que a ética é a estética da existência, e a
lógica não deixa de ser a ética do pensamento, a existência
em sua instância última é a fruição do
Belo, a arte, embora sendo sociologicamente condicionada, é o construto
cultural que afirma a funcionalidade do discurso poético como o
discurso da transformação, o veículo essencial da
verdadeira revolução, é da dimensão estética
e na dimensão estética que todo um paradigma pode ser aperfeiçoado,
atentemos para o nascimento do século XX, este surge culturalmente
por cerca de 1880, com a crise no sistema de representação
então vigente e inquestionável, as transformações
ocorridas no campo das artes plásticas, a utilização
da linguagem visual não mais em termos naturalista (representação
fiel da natureza), mas sim explorando as sua próprias possibilidades
de representação, dilatando o campo de interpretações
possíveis, na arte expressionista com Van Gogh, isto devido entre
outras coisas a invenção da foto, mas, em essência,
foi uma revolução global que atingiu outros discursos, como:
a lógica-matemática (Boole, Frege, Peirce), a física,
etc. A função básica do discurso poético não
se restringe a delimitar o campo do cognoscivo, mas sim a recriar o mundo
simbólico da vivência e entendimento humano, tem o poder de
remodelar a capacidade de uma sociedade como um todo de percepção
e fruição da vida. A grande característica da cultura
produzida no século XX e da arte em especial, foi de ter chacoalhado
o sistema de representação em que se constrói, de
ter explorado as suas fronteiras, versado sobre sua própria estrutura.
Esta é a característica que a literatura de um Kafka apresenta,
o que o torna tão relevante, ou um G.G. Márquez, sua relevância
não possui implicações apenas para a filosofia da
linguagem, mas abre um leque de liberdade entre a obra e o seu leitor ou
intérprete, a obra não mais se impõe absoluta, reduzindo
o diálogo a uma única direção possível
e lícita, mas é uma obra viva que se constrói em sua
interação com o leitor, intérprete, o que define a
arte do século XX, como afirma U. Eco, é a elaboração
da abra aberta, uma obra que expande o seu campo de referência, criando
um diálogo vivo porque múltiplo, existe uma possibilidade
infindável de fruições possíveis, não
há uma fronteira limitável de interpretações,
a obra aberta é uma obra que se alimenta de interpretações,
recompondo-se em “n” formas, criando não só um, mas vários
leitores em potencial, explorando vários planos da experiência
estética.
Quando se afirma o potencial revolucionário do discurso poético,
não há qualquer referência direta aqui às estéticas
positivistas, mais especificamente à marxista, o discurso poético
é revolucionário em sua funcionalidade, não é
revolucionário por força do ideal estético de uma
dada época ou sociedade, a arte que se diz engajada, é talvez
a menos “revolucionária” porque prima por uma referência direta
a um objeto que se elege como prioritário, real, diminuindo a flexibilidade
do discurso, estreitando as potencialidades do diálogo, fechando
as portas para novas experiências estéticas, a arte engajada
e “revolucionária” é ingênua por ignorar o carácter
intrinsecamente transformativo da arte em sua funcionalidade.
5. A literatura como reinvenção da realidade.
O texto literário revela-se em uma tríplice dimensão:
sintática, semântica e pragmática, a interação
do leitor com o texto, quanto às regras de comunicação
e intertextualidade, dá-se no plano da pragmática. Aristóteles
classifica os gêneros literários em: lírico; épico;
e dramático. Esta classificação pode ser sustentada
desde que se compreenda um quarto gênero: o narrativo. O romance
se encerra neste gênero. O que efetivamente está na base da
criação literária, como se processa esta mecânica?
Com absoluta clareza, o texto literário (no caso o romance) oferece
ao leitor aquilo que sua educação estética lhe permite
compreender, as interpretações possíveis do leitor
estão condicionadas, atreladas a sua experiência colateral
(esta última expressão Peirceana), mas um texto diz mais
do que, por exemplo, o seu criador pretendia dizer, um texto quando imerso
no processo semiósico, ganha vida autônoma e própria
(daí talvez Foucault ter dito que um escritor escreve para não
mais ter rosto), basicamente, em sua mecânica, um romance é
uma máquina de criar símbolos, o leitor os constrói,
em interação com o texto, à proporção
que produz interpretações, estas que renovam a sua interioridade,
e o remete ao campo simbólico, do mundo cultural em que vive, transmutado,
os homens se compreendem reciprocamente em um sistema de símbolos,
criam sua própria identidade e a reformulam, controlam ou extravasam
as suas tenções, o romance é assim responsável
por uma redefinição da realidade estatuída pelo jogo
simbólico das relações culturais, cria novas realidades
acrescidas de mais vivências, experiências estéticas.
Conclusão.
Este pequeno escrito teve por objetivo explorar, em pequena escala, a natureza e funcionalidade cultural do discurso poético, centrado na espécie do romance, uma das muitas formas de manifestação da poética. A experiência estética foi aqui tratada sob uma perspectiva semiótica, revelando a sua natureza cognitiva e potencial revolucionário, bem como sua vitalidade no plano simbólico na elaboração antropológica do conceito de humanidade. Com certeza o discurso poético, não é o discurso da concordância, mas antes o do múltiplo e diverso, o espaço livre da criação, imaginação, certamente a experiência estética que alimentou a elaboração deste texto nem de longe foi compreendida e nem será, pois o gozo da fruição de um romance, e sua experiência, não são perscrutáveis em sua riqueza pela elaboração conceitual.
Rodrigo Caldas
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(1) Semiose é a ação sígnica
ou processo de produção de significado.
(2) A triadicidade e irredutibilidade são propriedades
da semiose, que é um processo que se dá entre: signo, objeto
e interpretante, sendo tal processo irredutível a um desses entes.
(3) Signo é tudo aquilo que representa algo para
alguém sobre algum aspecto.
Bibliografia
Delacampagne, Christian. História da filosofia
no século XX. Tradução, Lucy Magalhães.-
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
Eco, Umberto. A definição da arte. Tradução
de José Mendes Ferreira.- Rio de Janeiro: Elfos ed.; Lisboa: edições
70, 1995.
____ . Os limites da interpretação. Tradução
de Pérola de Carvalho.- São Paulo: Perspectiva ed., 1995.
Hauser, Arnold. História social da literatura
e da arte.- São Paulo- Mestre Jou, 1972-1982.
Santaella, Lúcia. Metodologia Semiótica.
Tese de Livre Docência: Universidade de São Paulo, 1993.