COBRA: la boca obra / Ou: um ensaio penetrante
José Luiz Dutra de Toledo
Colagem resenhada elaborada por José Luiz Dutra de Toledo com fragmentos de textos de vários autores: Severo Sarduy, José Lezama Lima, José Kozer, César Vallejo, Haroldo de Campos, Irlemar Chiampi, Josely Vianna Baptista, Jorge Rodríguez Padrón, José Luiz Dutra de Toledo e outros.


            Neobarroquismo: tendência que vê na “plasticidad del signo”, e em seu caráter de “inscripción” o destino mesmo da escritura. Cantando seus males espantam: brocardo popular de semântica pertinência. Severo Sarduy nasceu em 1937, em Camaguey – Cuba. É bem um discípulo e um herdeiro do “etrusco da Havana velha”, Lezama Lima (*1910 +1977). “Sou um monge dessa religião chamada Lezama.” _Severo Sarduy. Sarduy tem também essa noção de escritura como “travestimento”, como desdobramento paródico e translação metafórica. Pólo dialético alternativo. Essa maravilhosa fusão de barroco e precisão crítica que encontramos em Sarduy revela um mundo de espirais densas e de redes infinitas. A literatura como teatro barroco do significante, plástica metamórfica do signo impresso em hieróglifos que sulcam páginas antes em branco. A festa como excesso, o horror ao vácuo e vertiginoso caminho em busca da mais pródiga plenitude do nada. Sade, Georges Bataille, Julio Cortazar, Manuel Puig (de O beijo da mulher aranha), o Fuentes de Zona sagrada, o Elizondo de Farabeuf, o Donoso de El lugar sin limites, Compact de Maurice Roche, Alejo Carpentier de O Reino deste mundo, toda a obra de Luis de Góngora... a noção perturbadora do fulcro móvel dessa rosácea de leituras, a exuberante profusão barroca e a ausência como esvaziamento, zerificação do muito e do pleno, tensão de miragem, em busca de uma ética do luxo e do desperdício (à qual se referiu Bataille em La part maudite)... Por uma solerte perversão/ subversão do logos cartesiano linear pós-aristotélico-jesuítico!... A poética, a memória... Estilo que Oswald de Andrade chamou “utópico” (antieurocêntrico, antiptolomáico). Uma contraconquista, uma resistência. Preciosismos gárrulos com nítidos condimentos da écriture automatique surrealista, o barroco da leveza, mutante, transformista, metafórico... As cartas de Severo Sarduy para Haroldo de Campos “todas elas, desde o mais transeunte cartão postal até o bilhete mais lacônico, resplandecem com seu traço redacional personalíssimo, afetuosíssimo, metafórico e musical a um só tempo”. Haroldo de Campos comenta passagem da visita de Severo Sarduy a Caetano Veloso: “Foi uma noitada inesquecível, com Severo dançando e cantando ao ritmo da voz e do violão do “tropicalista” Caetano.” Lances estudadamente interruptos de sintaxe e de uma fulgurante metáfora de enlaces semânticos. Segue o passo do tempo, lento, a vaga irrealidade. Vinho que esfuma, cor púrpura, cinábrio, tez laranja... O vermelho do sangue que se esbanja selou sua exploração. Selou sua vida. O novo homem barroco de Sarduy pródiga mais na visibilidade desse duelo cultural, desde o excesso das cenas (de teatros, de bordéis, de manicômios, de gabinetes cirúrgicos e de motéis) até o das sinédoques, disseminadas na infinitude dos ornatos e detalhes (em Colibri essa pulsão minimalista culmina na pintura de pulgas amestradas e dançarinas. Na levitação barroquista de Sarduy, o gigantismo do barroco “sério”, corroído pela ironia pós-moderna, se achinesa em “tutaméias” (Guimarães Rosa) de um voluptuoso rococó. Barrococó. Geléia de rococó. Numa mesa farta de doces mexicanos. Numa muralha de doce de cidra em densidade cascão. Colibri: mapa tropical do desejo em fuga. A amistosa esferográfica de Sarduy fora uma máquina de Marly? Uma libélula presa no ideograma do umbral,despede-se Sarduy. Selva, labirinto, trama, caprichos, voz escrita no branco da página: semente fecundante/ germinativa com feracidade tropical, em um contínuo incessante, fluente, flamejante a configurar os rotundos contornos das imagens obtidas com aquilo que nos satisfaz, um nascer constante e plural, incessante... múltiplo de dissimilitudes numa explosiva e expansiva polissemia. Imaginários diques de contenção, forma que respira asmática, ofegante, um barroquismo carnoso, corporal, latejante, pulsante, sanguíneo. Quando já não há opção para o arrependimento. Perplexidade que anula todo percurso. Saímos ou entramos? Saímos e entramos até o gozo e além do gozo e durante o gozo e antes do gozo...ou sem vislumbrar o gozo... Te aperto as mãos e ficamos adormecidos com saltos e sobressaltos, corações disparados. Saltam os olhos mortais de um mineral. Os fios invisíveis do olhar aproximam o texto até o eu, e este se deixa conduzir, e possuir: um ato copulativo no qual, por último, o leitor se abandona, e é livre. Mas livre para introduzir-se pelos intrincados despenhadeiros do mistério. “A grande plenitude da poesia correspondente ao período católico, com seus dois grandes temas, onde está a raiz de toda grande poesia: a gravitação metafórica da substância do inexistente e a maior imagem que talvez possa existir, a ressurreição.”_ J. Lezama Lima. O que é meu ser e o que está flechado, sombra queimadura, poeta: o encantador dos signos, porta do vazio que habita no absolutamente cheio, embelezamento da morte; porta onde São João de Patmos aguarda o martírio. A água converteu-se em rumor bem-aventurado. Atrativa cintilação da vida de um débil porém gozozo mortal. E sua sigilosa aventura. Intimidade em terramoto. Sacudida. Aturdida. A epopéia interior, a aventura emocional e mental, já não pode contar-se. Com a mais gulosa avidez tomaram de assalto o castelo (corpo) de sua língua. E já não houve defesa possível de ordem alguma. O relâmpago instantâneo do poema te diz que é tua própria imagem o que exploras. E quando o prazer começa o tempo da luz se esgota... O corpo enrolado em seu manto e sua sombra, entre a abundância e o nada, paira entre a encarnação e o mistério. Numa procissão para despertar a abundância do nada e a pluralidade dos cheiros e a musicalidade perplexa dos passos ritmados pela banda de música e a dança da imagem sobre os ornatos do andor. Foi inútil esta procissão? Nunca o será, posto que saímos dali reconfortados ao haver conhecido o fundo da verdadeira existência: a vertigem da vida e da morte e da travessia alucinante do nada ao pleno e vice-versa. A substância degustável do porvir, do desconhecido. Avançamos decididos ou nos perdemos surpreendidos, para chegar à revelação, ao instante supremo, ao ponto de chegada que também fora o ponto de partida, ao instante supremo em que tudo se ilumina pânica e serenamente. Como num crepúsculo que resiste à noturnidade. À mentira da evidência e a evidência da mentira. A vigorosa feracidade/ veracidade, úmida e cálida, da América... a vã transparência da Europa invernal e desconsolada, ciente da sua fugacidade. A imagem transbordada que se encarna sucessivamente e mutativamente. O escritor lê a si mesmo. Não há prazer mas, sim, feitiço. Assombro sem final das formas. Não há beleza mas, sim, inquietude, a certeza indubitável de tocar o intocado e gozar. Fragmentação e síntese, unidade e unidades. Ondas concêntricas. Ondas voluptuosas e barrocas nos retábulos. O sentido se ergueu na estátua penetrando o olhar. Um escape que não se disciplina, não se ordena a partir de uma rotina invariável e previsível... Não à literatura policial!... Pelo desacato da ordem do realismo utilitário!...
            Impedimos todas as redutoras interpretações. “A poesia é como o ar, toca o homem e o define, lhe dá figura e contorno, porém o ar é irrepresável.” _José Lezama Lima. Escavemos o alvacento. A proximidade sensual do maravilhoso estala em visão original, em imagem e em palavras novas. O forno entranhável do homem e sua imagem do estelar é tão terrífico como prazenteiro. Rastro de manto e perplexidade que vai deixando a linguagem à medida que seu corpo se espreguiça e se dilata. Violenta gargalhada fora de um hospício. Gargalhada satisfeita e sarcástica, verso livre e fecundante na poesia de Lezama Lima!... As atrevidas visões de Vicente Huidobro. Agitada sensualidade insólita numa cerimônia erótica sem final.

                     II

            A cadência sincopada  de um relâmpago nas incertas e quebradas noites de tormenta. Escritura poética obsessiva. O poeta nos obriga a saltar de um itinerário a outro. De uma margem a outra. Esse caráter obsessivo que acabo de apontar não ocorre por puro capricho, nem por abandono ou por alienação do escritor. “Toda precisão é perigosa.” _ Alfonso Reyes. A absoluta e religiosa nudez sacrificial do conhecimento poético, essa peculiar circularidade do volteio do galo não resulta em algo fechado, mas, sim, como um vagar intencionado, numa mescla de temor reverencial e desconfiada perplexidade. Numa íntima substância da sua experiência pessoal ilimitadamente erótica. Num nirvana inconsciente. Numa cerimônia que nos põe frente a frente com nosso perpétuo desasossego, diante de nossa trágica desimportância. Diante da face mais escura e perigosa de nossa intimidade. Perante o “Dies irae” inicial, do big-bang mais remoto!... A garça sem sombras, o carrilhão dos mortos rastejando sob um sol trevoso. El Greco de Toledo!... Sem a humildade do acatamento! Que uma palavra livre toque o morto e o faça viver!... Superemos a nossa vulgaridade repetitiva escolar e evitemos a simples consumição de satisfações imediatas, em busca da iluminação original do tempo que nunca perdemos. Leia Carta a um jovem poeta de Rainer Marie Rilke enquanto é tempo. Este alfaiate está no fundo úmido do quarto dos fundos... os úmidos fundos da carne animal e sagrada saltam em mim.”Para mim, o permanente é o impermanente, a sucessão cotidiana, a vida que segue seu curso e que se consome, e não a vida unívoca e inequivocamente revolucionária.” _ José Kozer , escritor cubano contemporâneo. “Um olhar que não é ponto de vista, mas sim um ponto de cegueira, de não-vista, por onde se mete a zona branca do olho negro, através do qual passa para o outro lado.” _ José Kozer. Esse olhar é o que põe em movimento a imaginação. A desmesura verbal que brota. Um olhar reverente...de baixo para cima!...Ela faz as tigelas, a musicalidade precisa do barro em uma panela. O galo mudo em sua meia-noite. Inquietante fugacidade. Estamos possuídos por uma desilusão infantil. Hermetismo como sinônimo  de dificuldade e escuridão... Fugacidade da revelação alcançada... um entusiasmo verbal extremo... Nada disto deve ser confundido com o caos. Não esqueçamos que o poeta oficia, como sacerdote,  o ritual de uma purificação (pessoal e coletiva) e, em conseqüência,  deve ajustar-se à rigorosa ordem interna da cerimônia ( e colocar a palavra a serviço daquela). A jarra venosa dos líquidos brancos. A ruptura do mel. A mais vertiginosa das revelações é aquela que há de enfrentar-nos com a existência (com a vida e a morte) e com a identidade (com o sentido de nossa presença nesse discorrer). Horizonte recolhido. “O Íris resplandece, antes que acima nos céus, abaixo entre o escuro e a espessura, criando assim um imprevisível claro propício. Não se trata de um verniz  escurecedor do sentido. Entusiasmo místico, potente sensualidade. Devemos nos entregar ao motivo original. Seja este uma imagem, um objeto, um corpo, um som ou uma insólita visão. Fazer do poema o testemunho de um drama escondido na maranha do tempo e da memória, o que exige uma purga dolorosa. Memória e tempo ameaçadores. Galináceas em um quintal de altas cercas. Chuva nos charcos. Quando o escritor recorre à memória , à sua história familiar ou pessoal, não evoca certamente um tempo passado, mas sim estabelece uma transparência, faz uma confissão. O apogeu da brisa entre as papoulas. Confundir o real com o imaginado, o evocado com o presente, o literário com o coloquial, o religioso com o pagão é o que permanece e dá pleno sentido às nossas indagações. Na ordem estrita e litúrgica das nossas sucessões existenciais mantemos as nossas reflexivas pausas (Graduale) até chegarmos  à “Communio”, indagação sobre as nossas aconchegantes ou atormentantes insularidades. Uma galeria de espelhos.
                Que sobre todas estas cenas plane a sombra da morte. Uma revoada de excrementos, um lamento de violas, os pombos... Lá no fundo três mulheres se espreguiçam . na cozinha, falam de aromas. Chegamos à beira mar numa velha cidade do litoral finlandês.... e ficamos  naqueles parapeitos  daquela antiga represa continental, com seus muros de pedra enferma. A ilha como espaço de acolhida.  Lá nasci sobre o lombo de alguma palavra e para lá regressarei para morrer, com ou sem morte. Sinto que somos descendentes de uma longa arqueo-genealogia, de uma mestiça confluência de origens e atitudes. Um repetido começo “ad infinitum” de um mesmo vôo nupcial. De um sopro, de um mugido. Aqui não se trata de interpretar, mas sim de comungar. Estamos em um lugar sagrado. Ao leitor cumpre apenas entregar-se à palavra e deixar-se levar por ela, pela particular respiração do poema que, em fragmentos, em rumos inesperados, resiste à prosódia habitual. Abrem espaços de perplexidade e ocos de misteriosas amplitudes. Aqui dizemos não à linearidade da escritura e gozamos um repetido vaivém que nos aproxima e nos afasta do objetivo, subtraindo-nos sempre ao que inicialmente esperaríamos. Esse é o sentido das quebras nos enlaces sintáticos. Uma escritura carregada de afetividade e, por isto, resistente à ordem estabelecida. E do coloquial ao afetivo existe apenas um curto trecho, um átimo... um instante de metamorfose e mutação... Um big-bang quase sereno e, ao mesmo tempo, metafísico.

Fontes Bibliográficas:

1 – Haroldo de Campos – Três (re)inscrições para Severo Sarduy – São Paulo – Fundação Memorial da América Latina – 1999.
2 – Jorge Rodríguez  Padrón – Dois poetas cubanos – São Paulo – Fundação Memorial da América Latina – 1999.

José Luiz Dutra de Toledo

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O autor tem 49 anos, é Mestre em História pelo Campus da UNESP de Franca-SP; colabora desde 1967 com jornais e suplementos culturais de várias regiões brasileiras. Prêmio Clio – 1992 da Academia Paulistana da História. Organiza desde 1996 a Hemeroteca e, agora , também, a Biblioteca da Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto/SP-Brasil;  É professor, cronista e ensaísta. Proferiu em Lisboa e no Porto palestras sobre a presença homossexual na História e na Literatura Brasileiras em Janeiro do ano 2000.
 

Página atualizada em  11 de dezembro de 2001

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