1. Representação e interpretação.
A arte é uma categoria própria do entendimento humano, onde o homem se pensa enquanto ser que sente e ama, a sua linguagem é a linguagem das formas, traços, cores, uma linguagem mais intuitiva, direta, imediata; a percepção está no centro nervoso dessa categoria, a história dos homens e suas realizações deveria ser pensada antes sob a perspectiva das rupturas e revoluções de suas percepções e sentimentos do que de uma visão materialista e econômica. Não busco uma definição da arte, a arte não pode ser definida, é uma realidade ontológica à parte, é a categoria do humano, de suas angústias, de suas vivências transformadas em sentimento, uma inteligência emocional que se traduz em uma linguagem icônica, visual.
A relação entre solidão e a arte está na dimensão de sua criação, embora nos utilizemos da experiência pregressa das outras gerações de homens que viveram, pensaram e sentiram, a solidão é a matéria-prima que é comum a todo esse processo artístico e criativo que une os homens de tempos e sociedades distintas. A solidão é aqui tratada como um estado de consciência, uma forma de interação com o mundo... também um processo de autocompreensão, a solidão de que trato não é a solidão do homem ilhado e angustiado, do homem apartado do mundo, a solidão suicida e apática, mas a solidão enquanto busca de entendimento, enquanto meio de construção de um diálogo interior, que não se reduz a um solilóquio, mas é um processo que se traduz em criação, criação que vai além de sua consciência individual, que transcende o momento em que vive, o contexto do seu próprio sentimento. A arte sob a perspectiva de uma criação solitária é sentimento que se compartilha com um outro, sendo esse outro indefinido, sem rosto, um outro que é indeterminado, podendo ser um ou muitos, um número que se perde de vista... a arte que se faz e se alimenta de solidão como meio de libertação do sentimento é o mais poderoso instrumento de libertação de consciências oprimidas, ofuscadas, deslocadas, presas de um momento histórico, de valores cristalizados e circunscritos em um dado meio. A arte que é sentimento em fluxo, o é e se faz na solidão, na solidão do gênio criativo, na solidão de quem a lê e a sente... mas seria essa a solidão que tanto tememos?! A solidão de um ser abandonado, de um ser sem diálogo?! A arte solitária é a arte que vai além do diálogo convencional, da fala marcada, de um discurso esperado e monótono, a arte da solidão é o diálogo com a humanidade, tomada enquanto gênero que não pode ser delimitado, cujas conseqüências não podem ser previstas, é transcendente à unidade corpórea de quem a cria, à unidade de sua consciência dos signos e significados do qual faz uso, mas sofre a limitação de uma soleira lógica e axiológica, pois existe uma lógica que a alimenta e sustenta, sob pena de ser algo incomunicável, algo que do contrário não poderia ser compartilhado, sentido em comum.
Se a arte é fluxo de sentimentos, é vivência emocional que encontra na solidão um estado humano subjacente ao seu processo de formação e construção, esse fluxo não se dá no nada. É a representação o campo das possibilidades desse fluxo... é na representação e através dela que os homens compartilham seus sentimentos, suas emoções, a solidão é comum a cada um, em sua individualidade, é a forma particular de sentir o mundo, um mundo que se dá na forma representada, fragmentada, o mundo assim não é algo pronto e acabado, é antes um teatro, uma peça que se encena, que se processa em fluxo de sentimentos traduzidos e compartilhados na e através da representação, viver e sentir só ganham dimensão significativa através de um jogo representacional.
A representação é como se mostra o mundo, como ele se dá. A representação em fluxo é a corrente de sentimentos subjacentes que lhe confere sentido e unidade, a solidão o estado através do qual nós podemos lê-lo... a solidão é estado, é forma de estar e sentir o mundo, é a transcendência e ruptura com o diálogo, com o banal, o comum, o mesmo, é busca de um fluxo que é comum e universal, mas que só se dá na experiência individual de cada um... a solidão e talvez só nela sejamos verdadeiramente universais e vivamos uma experiência coletiva, esse fluxo que atravessa os tempos e humaniza os homens, convertendo-os em um gênero com propriedades comuns; não se nasce sabendo sentir ou amar, aprende-se. E esse aprendizado, o aprendizado do sentir e do amar é o que temos de verdadeiramente humano, uma corrente que flui, que se dá na representação e que exige de cada um a capacidade de viver a solidão, para viver, paradoxalmente, o comum, o coletivo... Fora desse jogo, de formas e representações, jogamos um outro jogo, que só na forma é humano, um jogo de cartas marcadas e papeis definidos, um jogo pálido e monótono, o jogo do cotidiano. Um jogo desgastante, um jogo que se alimenta desse fluxo que corre subjacente a esse teatro das aparências, que só se mostra em toda a sua força e grandeza, em toda a sua universalidade e transcendência às consciências em estado de solidão, solidão criativa.
Se o mundo se dá através da representação, sendo a solidão a atmosfera de sua invenção e leitura, leitura que se alimenta de fluxo de sentimentos que lhe confere unidade significativa, esse mesmo mundo que se mostra fragmentário nos sugere a sua incompletude. Incompletude que se dá e se mostra na interpretação que fazemos desse jogo de representação através do qual nós formamos nossa identidade, damos nomes às coisas e seres, aprendemos a jogar o jogo lingüístico, a categorizar, a classificar e valorar, sempre em face da incompletude, da ambigüidade, da incerteza em que estamos imersos. Nos compreendemos na película desse fluxo de sentimentos, sentimentos que não vieram do nada, mas da experiência, da vivência dos homens de todos os tempos, que amaram, se desiludiram, tiveram suas alegrias, tristezas, angústias, e no mar desse fluxo afetivo construíram inconscientemente a consciência de um gênero, um gênero comum, que nós convencionalmente chamamos de humano e que tem na arte sua mais viva expressão, um jogo fragmentário de representação, onde interpretamos aquilo que nossa vivência particular permite ler, a interpretação que fazemos desse jogo fragmentário e incompleto em que o mundo se mostra através da representação é o que nos permite formar um juízo de nós mesmos, é o que nos permite fazer parte desse jogo representacional, agregando valores emocionais há uma imensa tragédia coletiva, que nos é anterior, nos é superior, pois conta com o sentimento e vivência de toda a humanidade, e nos transcende e sucederá, carregando em seu fluxo, fluxo subjacente a esse jogo de representação, a nossa própria vivência e emoções agregadas... processo que só se dá através da solidão, a solidão que alimenta toda uma rede de interpretações, que dialoga, um diálogo transcendente, com a experiência emocional de todo o gênero humano em um fluxo insondável, indeterminável... que não tem uma ordem delimitável... Talvez seu único propósito seja elevar a consciência dos homens, além de sua miséria e egoísmo.
2. O Objeto: Ficção e teatralidade.
O mundo se revela através da representação, não se revela em sua completude, em sua totalidade, o mundo não é algo pronto e acabado... mas comumente ele aparece como um objeto em um esquema cognitivo, passivo e inerte diante de um olhar inquisidor de um sujeito cognoscente, um sujeito que o lê e o descreve, um sujeito que o valora e categoriza, enfim, um objeto passivo e inerte em um esquema analítico. Esse objeto só existe nos manuais de filosofia, na mente cartesiana de pensadores mecanicistas. O objeto não é algo pronto, algo acabado, nem está inerte, não se entrega passivo a uma consciência analítica. O objeto se revela sim, na representação, mas revela uma de suas infindáveis faces, o objeto não está em uma interação com um sujeito pensante, ele não forma uma relação diádica, dualista, mas se mostra indiretamente, em uma relação tripolar, triádica, onde entre o sujeito e o objeto há a representação, o que nos permite ver o objeto, a forma em que ele se mostra. Se o objeto se mostra através do signo, da representação, a sua maior parte permanece oculta, insondável, indeterminável, o objeto oculto à representação, aquilo que a representação não revela do mundo, sugere que o mundo está em movimento, é o “objeto dinâmico” da semiótica peirciana, o objeto que foge à representação, sustentando-a, pois é o espaço de todas as possibilidades que ela não revela, não mostra, é tudo o que o “objeto imediato não é”, é o que sustenta a identidade do mundo, do objeto que se revela ao pensamento através da representação.
O mundo então é antes um processo, algo em sua dinâmica, em movimento. O objeto dinâmico sustenta a identidade do objeto imediato, lhe dá sentido e modela sua identidade, o mundo que se revela na representação, o objeto imediato é a prova da incerteza do pensamento, de suas possibilidades infinitas de inferência, de cognição. A ficção nasce da dialética entre o que se revela, objeto imediato, e o insondável, objeto dinâmico. É a ficção a matéria-prima através da qual preenchemos lacunas em nossa incompreensão, as infinidades de possibilidades do pensamento são regidas, em face da economia de se nos impõe, não podemos pensar tudo, pela ficção que sustenta a nossa compreensão do mundo, diante do que se revela na representação, criamos o que não temos, a dinâmica do mundo, inventamos histórias para suprirmos uma lacuna que nos permite entender e pôr ordem no mundo de representações fragmentárias em que estamos imersos. A ficção é fundamental nesse processo de criação e compreensão, um processo dialético, que se dá entre o representado e o que se oculta através desse mesmo jogo de representação, a lógica que campeia essa interação dialética é a teatralidade, a arte de uma representação dinâmica, em que se confere sentido e unidade às representações desconexas e fragmentárias de um mundo em movimento.
A realidade é assim a construção de uma teatralidade, a realidade surge dessa interação entre o que é revelado e o que se oculta, e em se ocultando, alimenta a dinâmica de uma possibilidade infinita de representações. A realidade tendo a natureza da teatralidade, de uma dinâmica de representações que se alimenta de ficção, para a sua consecução de uma unidade significativa. É a ficção que cria a realidade que buscamos enquadrar objetivamente, buscando parâmetros seguros e estáveis. Mas a realidade põe por terra toda forma de objetividade, pois ela nasce da ficção, que é a matéria da criação e que se impõe pela lógica, uma vez que entre o objeto imediato, o que se revela, e o objeto dinâmico, o insondável que paradoxalmente sustenta a identidade do que se revela e atesta a dinâmica do mundo, só existe sentido quando suprida a lacuna entre as representações fragmentárias, o que confere ordem às representações e um sentido unitário é a ficção que surge do hiato entre o revelado fragmentariamente e o que é ocultado.
3. A consciência e os signos: a construção do leitor.
Em face da ficção e teatralidade do mundo, um mundo que na medida em que se revela através da representação, também se oculta, envolto em uma nuvem de incompreensão e mistério, evidencia-se o poder dos signos na construção de cadeias de interpretações, é como se o mundo fragmentário, abandonado a si mesmo não tivesse qualquer sentido sem a força da ficção, sem a inventividade de um leitor que confere vida e unidade a algo que em si, abandonado à própria sorte não tem qualquer significado, é só através da ficção que o mundo ganha sentido, que a realidade existe. É a realidade assim sustentada na ficção do que se revela, contraposto ao que fica oculto de um mundo dinâmico, essencialmente dinâmico, que exige sempre uma nova interpretação, algo que não surge ao acaso, uma vez que esse processo de conferir significado às coisas, ao mundo, se dá em cadeias de interpretações, que pressupõe sempre uma interpretação anterior, formando linhas condutoras por onde anda o pensamento. Quando se afirma a natureza fictícia da realidade está tão somente se chamando atenção para a relação que existe entre o revelado e o que permanece na penumbra, a dialética do pensamento que nasce do diálogo entre o que o objeto imediato revela através da representação e o que o objeto dinâmico oculta, por ficar fora da representação, não obstante lhe confira dinâmica, exigindo novas e possíveis interpretações e identidade, pois contrapõe à face do mundo que se revela na representação, tudo aquilo o que não é, não está na representação.
A ficção é essa cadeia semiótica de signos que se reproduzem vertiginosamente, exigindo consciências nas quais possam reproduzir novas interpretações, interpretações que se dão em cadeias de pensamentos, formando uma jurisprudência que as rege, dirige, desnudando uma constelação de valores em que se dá esse processo, que não é caótico, mas regido por valores, fins que orientam a busca da compreensão. Daí surge a hierarquia, uma hierarquia que é uma exigência de ordem, que decorre da própria economia que se exige em tal processo. Pois os pensamentos e os signos não são infinitos, embora estejam em constante crescimento. O mundo se revela nos signos, mas os signos o revela em fragmentos, é o mundo uma ficção, nascida da incompreensão, e exige por sua vez a formação de consciências em que se dê a multiplicação dos signos e a expansão do mundo. O entendimento, a compreensão é uma exigência de um mundo em movimento, em expansão. Os signos desnudam o mundo, o tornam significativo através da ficção e exigem consciências que possam lê-lo. O leitor em um sentido amplo é construído pelo mundo teatral e fictício, na medida em que também o constrói.
A consciência e os signos se exigem reciprocamente, o leitor é algo em construção, assim como o mundo não está pronto, o leitor também não está, está em formação, e se faz através dos signos, é com os signos que dialoga, é através das representações fragmentárias, incompletas, ambíguas que o leitor constrói sua identidade, sua consciência pensante e repleta de signos que compõe e descrevem um mundo que é só seu, fruto de sua vivência única e particular com o mundo e os signos. A identidade emerge desse mundo partido, fragmentado, um mundo sem sentido quando abandonado a si mesmo, a ficção é a matéria que o anima, que lhe dá unidade, e na medida que lhe confere sentido modela a identidade do leitor. O leitor, assim, lê e cria o mundo através da ficção, a ficção do mundo revelado em representações vagas e incompletas rege a modelação da identidade do leitor. Não é possível definir quem é o criador e quem é a criatura, pois se a ficção e a teatralidade do mundo é anterior ao leitor que já encontra um mundo pré-constituído, feito pelas gerações que o antecederam, este alimenta e agrega experiência a essa mesma teatralidade de um mundo fictício. Na medida em que sua identidade é formada pelas leituras que faz do mundo, ele também o modifica, agregando sua experiência, suas emoções, sua vivência. Daí a atualidade dos clássicos, que embora anteriores ao momento em que o leitor vive e o interpreta, sua ficção e teatralidade lhe é anterior, no entanto, modela a identidade do leitor e é renovado por ele, que é capaz de atualizá-lo, ao interpretá-lo em seu contexto atual.
4. A Máquina de Pensar.
Não me parece absurda a idéia do livro enquanto máquina
de realizar inferências, enquanto meio de renovação
da interioridade. O livro pensado enquanto máquina, por ser uma
construção da tecnologia, com seu formato, sua textura, sua
maleabilidade, sua lógica de numeração e ordenação
da leitura, tudo isso, aliada a idéia de que o livro é experiência
condensada, um artefato repleto de signos lingüísticos que
dispostos segundo uma sintaxe permitem a leitura e a realização
de inferências. O livro é revolucionário, o livro não
é ingênuo, as ditaduras sabem disso, o fundamentalismo sabe
disso, o homem comum suspeita do seu conteúdo revolucionário,
são as idéias que ele detém, é o conteúdo
explosivo de que ele dispõe, embora seja frágil, pequeno
e silencioso; é a mais importante realização tecnológica,
no sentido em que promove a ruptura com um estado de consciência
e visão de mundo. O livro põe o pensamento em movimento,
promove a dúvida, o livro também doutrina, pode também
cristalizar... de qualquer forma é uma máquina que não
passa indiferente. O livro carrega a assinatura de quem o escreve, assinatura
que não está no nome do autor, mas é uma assinatura
interna, a assinatura que emerge da identidade da leitura de suas páginas.
Uma assinatura que na medida em que desnuda a identidade do autor, sua
alma nua, também revela e desnuda aquilo até que o escritor
sequer imaginou dizer, sequer sonhou ser ou ter. Se a assinatura que emerge
das páginas de um livro lhe confere unidade semântica, por
sua vez a leitura o desloca, promove um recorte, pondo em choque a leitura
do mundo do autor, expressa nas páginas que escreve, e a leitura
de quem o interpreta, movido pela sua experiência colateral, que
não é a mesma do autor, que promove a sua renovação...
Um livro é um signo, exige outro, um livro exige outros livros,
para ser lido, outros que também serão escritos. Euclides
da Cunha escreveu “os Sertões”, Mário Vargas Llosa em outro
momento, em outro contexto, mas movido pela força da assinatura
dos Sertões, as idéias lá condensadas, as inferências
que fez, escreveu “A Guerra do fim do mundo.”Um livro exige outro como
a vida exige vida. O livro é a máquina de renovação
da espiritualidade, a espiritualidade tomada enquanto abstração,
enquanto pensamento, pensamento que oscila entre dúvidas e crenças,
os livros sempre teceram as certezas, como questionaram e lançaram
as dúvidas.
O livro é diálogo, Descartes dizia que ao ler dialogava
com as mentes mais brilhantes de todos os tempos, mas o livro é
antes, diálogo com o mundo, pois o mundo tem a natureza da ficção,
da teatralidade, o livro não nos aparta do mundo, nos remete à
sua essência. Sua essência mais nua, mais pura, sua essência
mais verdadeira, toda a força fictícia que alimenta o pensamento,
o une e funde aos signos, a manifestação caótica de
um mundo que só ganha realidade quando animado pela ficção,
pela arte da leitura do mundo, dos homens e de si mesmo. A ficção
e teatralidade do mundo não estão reduzidas aos livros, são
os livros que revelam e desnudam toda a força fictícia que
está no mundo, o que convencionalmente chamamos de realidade, animando
as interpretações que fazemos dele.
5. O Homem, o mundo e a reversibilidade.
Sendo o homem, o leitor do texto do mundo, quem o cria, pois tem o poder de conferir através da ficção e teatralidade unidade significativa a um mundo que se mostra fragmentário e sem sentido, na medida em que também é modelado por ele, pois constrói sua identidade na interação com esse mesmo mundo-texto, um mundo que o provoca, que o questiona, que o lança na desilusão de si, do próprio mundo, que se oculta, que se mistifica, um mundo que não se dá por inteiro, um mundo partido, onde se lê em partes, escrito muitas vezes em linguagem incompreensível, esse mesmo mundo que ganha sentido através da ficção, constrói a identidade do leitor, que assim só se identifica na interação com o mundo-texto. Mas daí emerge um paradoxo, é o homem quem cria o mundo ou o mundo que cria o homem? Nós pensamos o mundo que se mostra na representação, nós construímos sentido em um mundo vago e incompleto, mas pensamos o mundo que se revela, se desnuda aos nossos olhos, diante da nossa leitura, o mundo que se lê; mas esquecemos que o mundo é uma infinidade de possibilidades, que está além da nossa capacidade de interpretação, rompendo com a lógica, a axiologia subjacente às nossas interpretações. Esse mundo que está fora da representação, embora a sustentando, é o mundo que nos pensa, é a reversibilidade que estabiliza esse processo de ler e pensar o mundo, não somos só nos que pensamos o mundo, o mundo também nos pensa, a reversibilidade é esse processo em que os vários estágios estão em uma relação tendente ao equilíbrio.
Existe um pensamento grego que diz: “O homem é a parte da natureza que têm consciência de si mesma”. Vamos dissecar essa afirmativa, partindo da estrutura lógica em que se dá a leitura do mundo-texto. Essa estrutura é triádica, tripolar: sujeito-signo-objeto. O homem lê o mundo que se mostra na representação, nos signos, lê um objeto que se mostra imediatamente à sua experiência, aquilo que ele pode ler. A natureza dos signos, para poderem realizar sua função de representação, é o de ser vago, incompleto, impreciso, maleável. A relação que o homem tem com o mundo é a relação da incerteza, da fragmentação, uma relação essencialmente relativa, sustentada necessariamente em signos. Mas o objeto é complexo, não se esgota na representação, ela revela só uma face, uma de suas infindáveis faces, o conhecimento absoluto é uma quimera. Os signos revelam o homem em sua pequenez, e desnudam uma das inúmeras realidades possíveis, construímos o mundo que nossa lógica e nossos valores nos permitem construir. O mundo dinâmico que não se revela nos signos, sustenta a própria possibilidade de perceber, construir e pensar o mundo que lemos nos signos, o mundo da teatralidade, o mundo essencialmente fictício. Mas não podemos esquecer que a consciência que somos, é uma consciência construída e incompleta na interação com o mundo que se revela na representação, é a consciência que emerge do mundo-texto. É a consciência por ele formada. Isso não significa que o mundo que não exploramos, o mundo não manifestado na representação, que a nossa interpretação não permite ler, não tenha a capacidade de nos pensar. A idéia de um objeto dinâmico, algo que não se revela, as possibilidades lógicas de interpretações que não ocorrerão, não significa que não existam, podem não existir em nossas consciências, mas nada invalida a existência de uma consciência paralela, que sustenta a nossa própria possibilidade de pensar e sentir o mundo que se revela nos signos. Assim, decorre a idéia de reversibilidade, é ela que permite que pensemos o mundo, que possamos fazer a nossa interpretação particular do mundo, sem perder de vista que o mundo também nos pensa, pois construímos paralelamente a consciência pensante de tudo aquilo que não exploramos, não pensamos. A manifestação mais clara disso são o revezes, as reviravoltas, as surpresas que sempre nos assaltam, e o seu caráter trágico, de ruptura. É da própria essência da tragédia a ruptura, a surpresa, o que significa com a quebra de uma linha de interpretação já formada, um padrão de comportamento já estabilizado, a tragédia, que é a manifestação dessa “reversibilidade subjacente”, é a expressão exatamente do que estava sendo esquecido, do que não fora explorado, embora sempre fora uma possibilidade. É o mundo que nos pensa e nos revela pequenos e egoístas, presunçosos como ocorre em “Édipo-Rei”. A reversibilidade de Édipo foi o que ele não pensou, de rico, sábio e poderoso rei de Tebas, o amante e pai dos filhos de Jocasta ao homem pobre, solitário e amargurado, pai e irmão de suas filhas, o maior dos criminosos que mata o pai e desposa a mãe... cego, cego por não enxergar as outras possibilidades interpretativas, escravo de sua lógica e de seus valores... A reversibilidade aí foi o seu destino, o que lhe fora oculto, o seu contraponto.
Voltando à afirmativa inicial, o homem não é o único ponto da natureza que tem consciência de si mesmo, o homem é a parte da natureza que a pensa, na medida em que é pensado por todo o restante da natureza que ele ignora.
5. O pensamento, os signos e a solidão.
A idéia de um fluxo emocional que se transmite de geração à geração, que vai paulatinamente formando uma inteligência emocional que se expressa e transmite através da arte e que é aperfeiçoada através dela e que tem na solidão um meio de se atingir este estágio de criação e fruição do único bem verdadeiramente comum e universal é aqui retomado. Em face de todas as reflexões desdobradas ao longo desse pequeno texto, idéias que não são novas, que não são originais, mas que tentam abordar temas instigantes, como a arte, a realidade, o pensamento, o destino, enfim, uma plêiade de questões sedutoras que sempre merecem nossa atenção. O título desse texto é “A arte solitária”, a arte tomada enquanto linguagem do mundo, um mundo que se revela como um texto, que exige um leitor e consciências que se comuniquem através de um fluxo de sentimentos que só se renova paradoxalmente na solidão, a arte solitária são todas as artes, mas acentuei, na terminologia usada, o papel da arte literária, fiz uso de metáforas ligadas à literatura, fiz alusão à passagens da literatura, tentando explorar os conceitos que nós normalmente encontramos ao adentrar nesse mundo.
A arte solitária é a arte da descoberta de si, de atribuição de significado do mundo que tem a mesma natureza, natureza subjacente, da ficção. É a arte de pensar o mundo que se mostra na representação e de ser pensado por ele, em um diálogo que se dá entre o pensamento e o mundo, mediado por signos, um pensamento que exige um estado reflexivo e solitário para se libertar e tentar uma compreensão maior, surfar na fluidez de sentimentos que atravessam os tempos, que unem os homens sob o signo de um mesmo gênero, o gênero humano.
A arte da solidão é a arte da construção da identidade, é a arte de ler a fragmentação em que o mundo se dá. É a busca de um sentido no mundo. É a arte de se inventar e inventar o mundo. É a arte assim fonte de humanização, história dos sentimentos, emoções. É meio de compreensão, é transcendência e reflexão sobre o sentido de ser, de existir no mundo.
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Bibliografia:
Brandão, Junito de Souza. Teatro Grego: tragédia
e comédia - Petrópolis, Vozes, 1985.
Foucault, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
ciências humanas. Tradução: Salma Tannus Muchail. -
8º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Vico, Giambattista. Princípios de uma ciência nova:
acerca da natureza comum das nações. 2. ed.- São Paulo:
abril cultural. 1979.