ROGEL SAMUEL: FOI ONTEM QUE TUDO ACONTECEU
Neuza Machado (*)
Rogel Samuel (Manaus, 1943) não é um novo poeta: Desde os anos 60 escreve e publica - já em 1965 era incluído na antologia de Anísio Mello, Lira amazônica, publicada em São Paulo; e aparece também na Grande enciclopédia da Amazônia (Belém, 1968) de Carlos Rocque. Publicou muitos poemas em revistas e jornais, ainda que a grande parte de sua obra permaneça inédita (cerca de 200 poemas). E é como poeta que hoje aparece na Enciclopédia da literatura brasileira (Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, MEC). Por isso é que, quando finalmente ele publica os seus Poemas (Rio de Janeiro, 1990, 130 poemas, edição limitada a poucos exemplares, encadernados) insistimos em comentar a sua poesia
Os Poemas de Rogel Samuel estariam inseridos numa nova proposta literária? Seriam característica de uma fase de transição na literatura, ou estariam inaugurando (talvez, com outros poetas das duas últimas décadas) uma mudança na História da Arte da Poesia? Poesia lírica ou poesia épica? Poesia épo-lírica?
O certo é que seus versos são incomuns, e o incomum não é privilégio de todos. Por ser incomum, ainda não há como caracterizar sua obra poética. Que é uma narrativa (ou várias) não há dúvida. Narrativa fragmentada, como fragmentado é o homem do século XX. Narrativa-ruptura contra o instituído, o tradicional, inclusive, contra as antigas rupturas da forma poética. O sujeito poético trabalha-batalha com o não-dito e é uma operação de vida e de morte. Ele vive e morre e renasce a cada verso, porque, ao nascer, uma fênix pronunciou seu nome e apresentou-lhe o tesouro do "vazio criador". Um não ao preenchimento instituído. O preenchimento instituído não faz parte de seu fazer literário. Seus versos navegam águas profundas: "Não velejarás/ por viajar/ não velejarás/ entre as paredes más". Um não às formas instituídas e sem vida. Sim ao direito de dizer não. Ao direito de escrever só para leitores eleitos; sim ao direito de "escrever tão pouco/ que o verso/ não perturbe o silêncio". Sim ao direito de escrever só "quando as dores (o) assaltarem/ que é quando as folhas das (? )/ colhem palavras do não".
Eis aqui o sujeito que não aceita escrever por escrever:
Não. Não escreverás um
só texto
mas o que for dito
e luminoso.
Sujeito fragmentado, porque não se adapta às leis da continuidade estabelecida. Sujeito fragmentado, porque quase todas as suas faces/fases não pertencem à realidade: sujeito extra-realidade.
O sujeito poético retorna no tempo, porque quer desvendar as formas conceituais que propiciam culpa e castigo; retorna no tempo, porque há fragmentos de seu ser ainda presos à realidade, e ele quer libertar-se, assumir o não-constituído.
O sujeito poético é narrativo e lírico, mas não é ficcional. Sua narrativa é verdadeira, são suas verdades mais íntimas reveladas ao arrancos: verdades fragmentadas. O sujeito é lírico, mas seus versos não são líricos, são verdades. São épicos. Nova epopéia. Epopéia de 80. Epopéia lírica, porque o sujeito é lírico. Os poemas não. O poema lírico possui subjetividade, mostrando-nos a objetividade do mundo. Aqui, ao contrário, há a objetividade, porque a realidade dos poemas faz parte da história pessoal do sujeito poético: é realidade pura. O sujeito quer enunciar/anunciar algo que fez/faz parte de sua história pessoal. Narrativa épica, épica não-tradicional, porque é a verdade do sujeito, suas experiências de vida como ser que se obriga a ter uma existência concreta. O lado concreto do sujeito poético. A vida é curta, "Vadiemos, pois". Não há deuses. Criemo-los, pois. Criemos o mítico, no subjetivo da História. Se não há mais como passar além do eu, coloquemos um eu sublimado no centro da História, um eu experiente e pluralizado. Não há lugar no mundo para o individualismo, naveguemos, pois, todos unidos, Artista e leitores privilegiados. Não há lugar para super-heróis, sejamos, pois, todos, heróis de uma epopéia de seres marcados por vivências desencontradas. Seres, habitantes de um Mundo fragmentado. Não há o tempo épico tradicional, não há demarcações explícitas, porque o tempo não se faz distante. Foi ontem que tudo aconteceu. Foi ontem, mas se encontra distante, temporalmente, dentro do mundo literário do sujeito poético. Se se encontra distante literariamente, nada mais justo do que uma apresentação dos fatos históricos/subjetivos que marcaram a realidade do sujeito. Apresentação : essência do épico, segundo Staiger. Apresentação fragmentada, descontínua, trechos de uma história pessoal, relato que unifica, que se faz ouvir apenas no âmbito do poético. Não há tempo definido, a não ser por datas que pouco esclarecem. Não há espaço, porque o espaço é uno. Não há antes. Não há depois. Há dores. Há sofrimentos. Há angústias. Há o sentimento do irrealizável. Fragmentos de um cotidiano rico e absoluto para o Poeta. O Absoluto não se encontra mais aquém e além da realidade. O sujeito poético encontrou seu Absoluto no literário, e o literário é verdadeiro em-si, completo. E é substancial enquanto expressão da alma.
Se a narrativa é fragmentada, a verdade é inteira. Não há mentiras. Só não a vê quem não quer. Os leitores eleitos vêem.
O sujeito é um ser extra-realidade, que assume suas experiências de vida, experiências comunitárias. O sujeito mitificou-se, para produzir o épico. Não há mitos clássicos numa realidade fragmentada. O herói é o sujeito poético, único herói, despersonalizado, porque somatório. Soma de desvalidos existenciais, buscando uma História que os componha, buscando sobreviver no Caos, heroicamente.
"Deixa de/ lastimação/ que amanhã/ não acordarás"/, herói. "Por perto/ ronda o céu/ aberto/ que é necessário ao/ heróico fugir".
Fuga de herói. Busca de céu aberto com todos os eleitos, se por ventura (ainda) existirem. Busca, e com ele vêm todas as experiências literárias que se encontram na História.
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(*) A autora é Mestra e Doutora em Ciência da Literatura/Teoria Literária – UFRJ –, Professora da Faculdade de Letras da Universidade Castelo Branco, autora de O Narrador toma a vez : sobre "A hora e vez de Augusto Matraga" de Guimarães Rosa e Do pensamento contínuo à transcendência formal : sobre a obra ficcional de Guimarães Rosa).