A arte e a arte culinária: eros

Manuel Antônio de Castro (*)

O que é a obra de arte? Esta é a questão sempre originária. Heidegger procura tematizar esta questão tomando um caminho poético e ao mesmo tempo de pensamento. Ele retoma a antiqüíssima questão da “coisa”. Esta palavra usada em português vem do latim “causa” e é uma versão de uma outra palavra latina: “res”, de onde se originaram as nossas palavras real, realidade e realização. As duas palavras latinas, por motivos diferentes e em momentos diferentes, tentam traduzir “on”, particípio presente do verbo grego einai. Por outro lado, ainda recebeu uma terceira tradução latina, seguindo a tradução desse verbo grego para o latim: “ens, entis”, particípio presente do verbo latino esse. Concluindo: “coisa”, “real”, “ente” são traduções latinas variantes da mesma palavra grega “on ”. Então, perguntar pela “coisa” é perguntar pelo “on ”. Ocorre que essas questões e traduções se perderam nos escaninhos históricos da memória. E hoje a questão da “coisa” se tornou a palavra mais densa para encaminhar a questão da obra de arte, porque os grandes poetas se centralizam nela. Citaria a título de exemplo: G. Rosa, Clarice Lispector, Manoel de Barros e, sobretudo, Fernando Pessoa, que dedicou um pseudônimo a toda essa questão: Alberto Caeiro. Na filosofia, essa questão também se torna central, sobretudo com o surgimento do empirismo. Por oposição aos conceitos metafísicos, que queriam valer no lugar da “coisa”, como sendo a verdadeira “coisa”, os empiristas propõem um “voltar à próprias coisas” (zu den Sachen selbst ). Esta reação empirista tem uma contrapartida na Fenomenologia, inaugurada por Edmund Husserl. Ele procurava uma visão das essências (Wesenschau ), mas sem as conceituações elaboradas numa interpretação equivocada do pensamento de Platão em torno do “ on”, como sendo o “eidos ”. Diga-se de passagem que no alemão vai acontecer em relação tanto ao “on ” grego como ao “ eidos ” de Platão, uma variação de traduções: “Das Seiende, Die Sache, Das Ding”. A Fenomenologia, como o empirismo, propõe a volta às próprias “coisas” (Die Sache), não mais fundada a volta na experiência, mas no ver. No fundo, este caminho e pressuposto acaba por remeter para a consciência como intencionalidade através das reduções eidéticas, recaindo, de algum modo, de novo, nos conceitos. Claro, não mais os denominados metafísicos, mas de qualquer maneira ainda lógicos e abstratizantes. A questão da “res ” (“coisa”) é a questão central da escolástica medieval. A Fenomenologia traz de novo é também uma constatação simples: a teoria da visão das essências não quer ter o caráter metafísico que pretende superar. “A teoria das essências não se enquadra num realismo platônico em que a existência da essência seria afirmada; a essência é apenas aquilo em que a própria coisa se me revelou numa doação originária ” (Lyotard: A fenomenologia, Ed. 70, Lisboa, 1999, p. 18). Com as conquistas da Fenomenologia, constatou-se que todos os saberes são, em última instância, uma doação da coisa, mas que nenhum dá conta da coisa. Tais saberes têm uma pretensão básica: serem epistemológicos e científicos.

Não é o caso dos pensadores e dos poetas. O que é a “coisa” para estes? A “coisa' dos filósofos e cientistas não é a mesma dos pensadores e poetas? É e não-é. É nesse “entre”do “e ” que entra a reflexão de Heidegger e se mostra a coisa também no horizonte e experienciação não positivista nem empirista dos pensadores e poetas. É que estes se movem num outro saber. O saber da coisa é, de alguma maneira, originariamente também o sabor da coisa. Um tal saber e sabor, por isso mesmo, não me advém da razão, mas é uma doação da própria coisa. E como ocorre essa doação ? Como obra.

O itinerário de Heidegger é simples e, ao mesmo tempo, complexo, pois exige dois processos: 1º. Um conhecimento das tradicionais interpretações da coisa; 2º. Uma depuração de tais conceitos e um abrir-se para a poiesis da própria coisa. Isso implica algo muito radical: a) tomar o ser humano como questão; b) tomar o “real”/ser como questão; c) tomar a tensão e referência ser humano e ser/coisa (real) como questão. A seguir damos apenas algumas indicações, importantes para a questão da obra de arte.

Primeiro Heidegger mostra que o utensílio está numa posição intermediária entre a “coisa” e a obra. Ao perguntar o que é o utensílio em sua serventia faz uma distinção essencial. Ela não constitui o ser utensílio do utensílio, mas, sim, a confiabilidade. Porém essa segurança é obscurecida pela serventia a que o utentílio é submetido. O que aproxima o utensílio, enquanto confiabilidade, no sentido de que traz segurança, é um traço comum à coisa. “O repouso do utensílio que repousa em si consiste na segurança (ou seja, que é portador de uma segurança, assegura uma segurança, daí ser confiável). Heidegger pára por aí e em seguida faz uma inversão. É a obra de arte que dá a saber o que o utensílio é em verdade. Aqui aparece o termo “verdade” pela segunda vez. A primeira foi numa afirmação semelhante, mas a respeito da confiabilidade, quando diz: “O repouso do utensílio que repousa em si consiste na segurança. Somente a partir dela concluímos o que o utensílio é em verdade” (§ 49).

Disto podemos tirar duas conclusões:

1ª. A inversão do utensílio para a obra é essencial. Mergulhados no plano da “sobrevivência”, em que os utensílios ocupam – ainda mais hoje com a instrumentalização técnica e com a redução da linguagem a um instrumento funcional de comunicação – quase de modo absoluto nossa vida e nossa formação.

2ª. As obras de arte ocupam aí um “lugar” secundário e predominantemente estético. E vem Heidegger e inverte tudo. É a obra de arte, em primeiro lugar, que dá a saber o que – em verdade – o utensílio é. Diante da evidência da vida de hoje e dos fatos, não são os utensílios que respondem às nossas necessidades mais importantes e fundamentais? Há nisso um grande engano.

Vejamos algo bem concreto e evidente. Partamos de algo irrefutável e presente na vida de cada um. Desde que nascemos, a necessidade mais radical é comer. O choro do recém-nascido já indica sobretudo fome. Mas façamos da fome algo poético-ontológico e não meramente físico. Façamos do comer, do alimentar-se, a necessidade radical e essencial. Mas o que acontece com o comer e com a comida, em todos os tempos, em todos os povos, em todas as idades? Ninguém simplesmente come para acabar com a fome. Há a preparação da comida. Há até um certo ritual. À preparação da comida se denominou e denomina arte culinária. O que esta faz com a comida? Em que é que ela consiste? O importante a perceber aqui é que o “cuidado”, enquanto arte, com a comida precede o simples comer e “satisfazer” a necessidade. A arte culinária não acrescenta algo à comida física. Pelo contrário, o cuidado, a Cura, já mostra um outro horizonte em que se move o satisfazer a necessidade de comer. Ou seja, o comer é muito mais do que a satisfação “física”. A comida antes de ser um utensílio que satisfaz à necessidade de comer, antes de ser útil, ela é arte culinária. Mas aí notamos algo extraordinário. O âmbito do “útil” (ou seja, do utensílio) tem sua medida de satisfação e de alimentação não em si, mas na medida inerente à arte culinária. O ser humano já se move no cotidiano ato de comer num horizonte poético-ontológico. Alimentar-se para ele é um alimentar no horizonte da arte. O culinário diz aí um modo de arte. Os ritos de comer, os próprios ritos das primícias já mostram como a própria arte de comer já se inscreve em algo bem mais complexo e essencial, onde não há separação de modo algum entre o físico, o psíquico e o espiritual. As próprias obras de arte – música, canto, vestes, pinturas, instrumentos musicais, dos ritos – sempre estiveram ligadas a esses rituais e festas. E em todas as festas sempre estão presentes as comidas, a mesma arte culinária a tudo integrado. E o sagrado a tudo reúne, porque em sua vigência comparece vida e morte, como essência e vigor de manifestação, alimentação e vitória da vida diante da morte. A arte se integra à vida de tal modo que o viver é, poético-essencialmente, fazer da vida uma total obra de arte. É nesse sentido essencial que as obras de arte são sempre alimento.

Nesse sentido, o sacrifício precede tudo porque é dimensionar o viver pelo sagrado, é oferecer a própria vida – supremo bem – para a presentificação e consumação do sagrado. Este tornar sagrado pelo e no comer está bem manifestado em Cristo e na sua última ceia – consumado na morte pela dor e na ressurreição pela alegria.

Mas há um outro ponto que é normalmente também esquecido. A arte culinária transforma a dor em alegria e prazer. É um ato de libertação. O esmero da arte culinária consiste na potencialidade de prazer de que é capaz. Mas não se pode aí medir o prazer pela satisfação “física”, até porque esta nada diz e nem é apreensível sem aquela. Que prazer e satisfação é essa?

Aqui temos que introduzir eros e fazê-lo percorrer os mais diferentes níveis de prazer. O supremo prazer do enlace, erótico-amoroso não renega o prazer que advém da arte culinária. É o mesmo prazer, mas em dimensões diferentes. Ora, a obra de arte vista e compreendida a partir do comer e do alimentar e do dar prazer deve também ser incorporada ao prazer e como extensão ritual da suprema arte, a arte culinária, não como algo externo, mas como a decisão de alimentação da vida, ou seja, poético-ontológica.

É nesse horizonte que devemos empreender uma reflexão em torno do Bem, do Belo e do ético – os três níveis integrados que a obra de arte – como alimento poético-onto-fenomenológico do ser humano – manifesta e constitui.

A obra de arte é alimento e catálise. Mas o que isto desencadeia em cada um?

a- Se partíssemos da tradicional divisão de alimentos materiais e alimento espiritual ou racional, teríamos dois crescimentos:

1º. O do corpo; 2º. O do espírito, o racional.

b- Como não partimos, ocorre a “incorporação” de um e de outro pela “arte”. E então o corpo e o espírito se dão e crescem e constituem pela “criação de mundo”, em que este é o horizonte da arte culinária e das demais artes. E este se manifesta em tensão com a Terra / dzoé que a tudo sustenta em seu silêncio vivificador. Mas incorpora também o Céu, os mortais e imortais. É importante dizer que Heidegger pensa muito bem isso, ao dizer do mínimo de mundo com o mínimo de vida. Na teoria de Escola de Santiago, sobretudo com Maturama, vida é conhecimento, como explica Capra no seu livro A teia da vida.

Dos quatro resulta o mundo, mas este é que “weltet” (munidifica). Como se dá a tensão entre mundo criado e criação de mundo: É aí que entra a memória. A obra de arte é portadora de duas dimensões: a- preserva o mundo da memória; b-cria o mundo da memória no que ainda não é. Há um não inerente a cada obra que também alimenta o não-é de cada ente, porque a obra ao ser linguagem, a obra e a linguagem não são, mas operam, e operando são. Mas como incorporam o mundo criado no doar-se e operarem, são esta e aquela obra. Esta tensão como acontecer gera as “épocas”. Toda época é época e é inaugural. Toda obra é epocal e não-epocal, pois é dotada de poder inaugural. É o que inapropriamente se chama a-temporal. O inaugural é a linguagem – que não é este ou aquele ente, mas a possibilidade inaugural de todos. Mas a linguagem como esta obra é obra epocal. Em lugar da linearidade historiográfica vamos ter o círculo epocal.

A relação entre a alimentação e a época está no fato de que o que a obra alimenta consiste no operar. O quê? No como em duas dimensões: o que cada um é e o que o acontecer como como acontecer do ser é e o como o acontecer do é é, isto é, isso se dá em duas dimensões interligadas: a verdade e o mundo, ambos como manifestação do ser do ente e do ente do ser.

É nesse sentido que se dá a ligação da questão do ler em duas dimensões: 1ª. O que é ler, foi o que acabamos de ver; 2ª. O que ler? Aqui vai estar relacionado com o que alimenta, no sentido do que opera o metabolismo, ou seja, opera e alimenta. Vai alimentar certamente o que operando leva à verdade do ser e do que cada ente que se alimenta é, e isso significa a verdade consitituir-se no sentido enquanto a physis se constitui em Mundo . É necessário fazer aqui a ligação com as escutas, os diálogos, as identidades e as diferenças enquanto aí se dá proximidade e distância, se dá a dança. O que vai ocorrer é que a memória, a linguagem, o tempo é a presentificação do sagrado. Quando se reúne o que é ler com o que ler vamos ter o para que ler no como ler. Estas quatro dimensões: o que é, para quê, como e o que ler.

Claro que esses quatro processos em que o operar se desdobra e atua levam ao telos do que é. É nesse horizonte que se inscrevem as nove passagens e paragens, pois aí se articulam o caminho e os procedimentos e o que no caminho se encaminha como o que sendo já desde sempre é, como o que nos é próprio. Aí então se une e faz presente o destino e o acontecer, que é sempre em duas dimensões. Ver Nada e a nossa condição.

Mais profundamente, toda a questão da obra de arte e dentro desta da própria arte culinária está ligada a duas instâncias entre si correspondentes profundamente: o que é a “coisa” e automaticamente o que é a “coisa” ser humano. Estas duas questões ficam bem claras em sua ligação tomando diversos caminhos, mas o mais próximo é sem dúvida o da essência da ação do ser humano. Por quê? Simplesmente porque o ser humano não é simplesmente um ente/coisa que já está pronto como, por exemplo, uma planta está pronta ou o meu cachorrinho Valente está pronto. Claro, ambos têm já um código genético que comanda suas ações e dele vem o sentido delas. E o ser humano? Ele também tem código genético e, de algum modo, nada mais faz do que desdobrá-lo no como já é. Esse “como” é que faz toda a diferença. Esta diferença se apresenta em diferentes dimensões, sendo a mais importante o sentido que o agir inerente à linguagem genética “sofre”. Isto é, esse sofrer diz simplesmente o seguinte: o “como” do ser humano está relacionado, melhor, referenciado à linguagem. E para começarmos a diferenciar a linguagem inerente às coisas e a linguagem inerente ao ser humano, embora seja a mesma linguagem, dizemos simplesmente: A linguagem fala. O ser humano só fala quando responde e corresponde na resposta à linguagem. É aí que entra o “como”. Um tal como implica, uma vez que a Linguagem é que fala , uma escuta. O que nós denominamos linguagem era dita pelos gregos Logos. Por isso diz Heráclito no fragmento 50: “Auscultando não a mim ...” A ausculta faz a diferença “entre” o ser humano/coisa e as coisas. “Como” isso se realiza? É aí que entram as questões do ser humano/coisa e das coisas. Mas fique bem claro, não é a interpretação do ser humano que dá a diferença em relação às coisas. O que o ser humano é já se dá sempre no âmbito da interpretação da “coisa”.

É aí que se coloca a questão da obra de arte e da arte culinária. Como? Heidegger coloca isso de uma maneira profunda, ainda que complexa, ao fazer o levantamento dos conceitos de “coisa” dominantes no Ocidente. São três, mas se destaca a interpretação de “coisa” pela qual se faz uma distinção profunda “entre” obra e untensílio ou instrumento. Talvez no caso da obra de arte o melhor seja optar pelo vocábulo “instrumento”. Por quê? Na medida em que a interpretação/conceito do ser humano em relação/referência aos outros seres/coisas passa necessariamente pela linguagem, mas sendo necessário re-pensar o código genético no horizonte dessa mesma linguagem, a interpretação da coisa se dá ao mesmo tempo pela interpretação da linguagem. “Como” a interpretação da coisa se faz pela diferenciação de obra e instrumento, é nessa diferenciação que a linguagem também vai ser interpretada ou como obra ou como instrumento. Isto diz: A interpretação da “coisa” como instrumento é a interpretação da linguagem como instrumento. E mais: É a interpretação das coisas e do ser humano/coisa como obra ou como instrumento. Essa distinção é essencial e se torna profundamente válida e presente na questão da arte culinária. É que nela as duas dimensões estão profundamente unidas. É que inerente à interpretação da coisa como instrumento está a dimensão de tudo que existe e mais premente no ser humano/coisa da necessidade. Se não comermos morremos. E aqui o interessante: a necessidade não é algo que esteja jogado aí como algo aleatório e congênito ao projeto de vida e código genético de todos os entes/coisas. O horizonte maior e mais profundo da necessidade aparece, se manifesta, se faz presente, no horizonte da liminaridade de vida E morte. O comer responde corresponde ao agir pelo qual se sustenta e adia esta tensão que espera também necessariamente um fim. Necessidade e fim estão aqui essencialmente atreladas, correspondidas. Isto é inerente a todas as coisas e certamente ao ser humano/coisa. No entanto, é aí que algo extraordinário se manifesta e dá. O ser humano/coisa não simplesmente come. Ele faz do ato de comer, ou seja, do ato de responder e corresponder à necessidade, ou seja, à tensão de vida e morte, uma arte culinária. O que significa então essa arte culinária? Ele responde ao fim com um outro fim, ele responde à necessidade com a introdução de algo que foge à necessidade e, portanto, à questão de vida E morte. Ele faz da necessidade de comer uma arte. O que essa arte implica? Muitas coisas. Ao fazer da necessidade uma arte, ele faz do “instrumento” comida uma “obra”. Porém, é necessário ficar bem claro que essa obra que só o ser humano/coisa faz, não é obra da sua vontade, ou melhor, sua vontade só se manifesta como vontade porque já se poder exercer num horizonte prévio, que não depende dessa vontade, mas lhe advém, e não poderia ser de outra maneira, da linguagem. Como? Na medida em que o ser humano se constitui como ser humano enquanto e na dimensão da resposta, isto é, da escuta à fala da linguagem. É essa escuta que é a essência do ser humano/coisa. Logo, todo agir do ser humano em seu sentido lha advém dessa escuta, porque o agir inerente ao seu código genético, no sentido do código genético dos outros seres/entes/coisas, implica uma dimensão que nestes não se manifesta. É aí que o ser humano/coisa se diferencia. Isso implica o seguinte:

– necessidade e liberdade;
– linguagem instrumental e artístic
– obra e instrumento;
– fim um e fim dois;
– agir um e agir dois;
– ser um e ser dois;
– como um e como dois;
– trabalho e arte/jogo;
– vida e morte como eros/jogo prazer.

Manuel Antônio de Castro

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(*) O autor é Prof. Dr. Titular de Poética da Faculdade de Letras da UFRJ. Site do autor: <http://www.travessiapoetica.com>.

Página atualizada em  15 de novembro de 2005

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