Os três ser-tões de Grande sertão: veredas
Prof. Manuel Antônio de Castro
Guimarães Rosa, homem do ser-tão
João Guimarães Rosa é mineiro, nascido em Cordisburgo. Como poeta-pensador nasceu da e na poesia e pensamento. Embora tenha morado no Rio de Janeiro e no exterior, sempre se considerou um homem do sertão. A maior parte das estórias de sua obra se passam no sertão. Mas o que é o ser-tão? Esta é a questão que perpassa toda sua obra, especialmente a sua obra-prima: Grande sertão: veredas. Estamos comemorando os cinqüenta anos do seu lançamento. Eu creio que ela é a obra mais multifacetada de nossa literatura. Claro que considerando as obras como um todo há outros grandes escritores, mas me refiro à de Guimarães Rosa no sentido de quantidade, amplitude e profundidade de questões. Além da profunda transformação poético-ontológica que realiza na língua portuguesa. Podemos falar com grande propriedade da língua de Guimarães Rosa. Claro que essa língua nova é nova porque é viva, é um corpo e não um organismo. Ela não pode ser avaliada pela gramática fixa, morta e abstrata, pela gramática funcional e orgânica. Ele reinventa a gramática, porque reinventa o real inventando-o poeticamente. Reinventa a gramática porque institui uma nova sintaxe, a sintaxe poética. Sintaxe é mundo.
Sua obra foi traduzida para as principais línguas cultas e hoje os sertanejos, os jagunços, os rios Urucuia e São Francisco, as comidas, os vaqueiros, os bois, os cavalos, os fazendeiros, as paisagens do sertão correm mundo. Provocam perplexidade e curiosidade. Mas todos estes elementos novos em todos dos sentidos podem levar a um grande perigo: ler tudo isso como se tratasse de algo regional ou, para o estrangeiro, como algo exótico. Nada mais enganador. Em sua obra pulsa o que há de mais humano e mais universal. Dela surgem questões que disseram e dizem sempre respeito a todos os seres humanos e a todas as culturas. Nesse sertão todos nós nos encontramos, dele viemos e para ele voltamos. O que é então o ser-tão?
A obra de arte como diálogo de escuta
No título, o leitor já se depara com duas questões essenciais. Pois ele nos remete para o sertão , de um lado. E de outro, para as veredas. O que é o ser-tão? O que são as veredas? Talvez começando a ler essa obra genial comecemos logo a perceber algo muito interessante. Toda a narrativa se dá num diá-logo em que fala o personagem-questão Riobaldo. O que é uma personagem-questão? É uma personagem que como tal não existe senão para encarnar, hipostasiar uma ou mais questões. O próprio Rosa as denomina persona-gente. Riobaldo aparece contando para um leitor-questão toda a estória e história de sua vida. Porém, o leitor, aparentemente nunca diz nada. Só escuta. É nessa escuta que podemos, dialogando, escutar tanto o que a imagem-questão ser-tão quer nos dizer, quanto a imagem-questão veredas. O que é imagem-questão? É uma imagem-poética que se torna verbo para manifestar de modo vivo a questão ou questões.
Abrindo-se qualquer dicionário vamos ver que veredas denominam pequenos riachinhos, como caminhos de vida, pois indicam a presença de água em meio ao ser-tão. Tais riachinhos, veredas, a-travessam o ser-tão numa grande teia vital. É a primeira travessia. A segunda travessia se dá no diá-logo de fala e escuta entre o narrador e o leitor. Será um equívoco total se cada leitor que ler a obra achar que se trata de um leitor ficcional. Nada mais enganoso. Também Riobaldo não é um personagem ficcional. Tanto o leitor como o personagem-Riobaldo só são ficção enquanto obra poética. Obra é o que opera poeticamente, ou seja, age, na medida em que convoca cada leitor à escuta pelo diálogo a adentrar as questões do ser-tão, ou seja, do nosso ser. Nessa escuta então as questões se tornam nossas, provocando em nós um envolvimento tal que somos impulsionados a fazer da travessia de Riobaldo a voz da poesia falando em nós, dentro de nós. E então as questões que Riobaldo enfrenta não serão mais dele (mera ficção), mas nossas, pessoas vivas em meio ao ser-tão da vida, da nossa vida, de nosso ser.
Os três ser-tões
Na obra de Guimarães Rosa, o sertão é o lugar onde o povo vive sua sina, seus sofrimentos, paixões e alegrias. O sertão é o umbigo do mundo. Por isso Rosa não escreveu sobre o sertão, porque antes de tudo ele é um sertanejo, isto é, o homem do ser-tão. Por isso todos somos ser-tanejos. É bom que o leitor se lembre que esse escritor mineiro antes de se tornar um cidadão do mundo exerceu três profissões que ajudaram a entender como o sertão é amplo, bonito e triste, e verdadeiro, lugar de experienciação da vida e da morte. . É que ele vivenciou o sertão como médico do interior: na então Vila da Conquista, hoje Itaguara, interior de Itaúna. Disso lhe veio uma profunda experienciação do sofrimento. Por conjuntura política, participou da revolução de trinta e dois, como médico do exército. Isso lhe deu uma profunda experienciação da proximidade da morte. O destino, tornando-se diplomata, o lançou na construção dos diálogos entre os povos, levando-o a uma profunda experienciação da consciência como diálogo. São essas três experienciações essenciais que se fazem presentes em Grande sertão: veredas. São essas experienciações como ser que temos que ser que constituem as veredas e travessias dos sertões. Pois podemos falar, para tornar mais acessível aos leitores o seu diálogo com a obra, de três ser-tões.
O sertão é o grande tema da sua obra mais admirada: Grande sertão: veredas . Nela, o sertanejo Riobaldo narra as aventuras e desventuras de sua vida, revelando as muitas facetas do Sertão como paisagem natural, paisagem humana, paisagem religiosa e, sobretudo, como lugar do mistério. A separação que a seguir faço é somente para facilitar ao leitor a escuta da fala da poesia e dialogar melhor com o apelo que nos advém nas muitas falas de Riobaldo como personagem-questão. É que o ser do sertão sempre se faz presente em tudo, no todo que somos.
O sertão geográfico
Qualquer leitor brasileiro com um mínimo de formação geográfica identificará imediatamente a sua localização. Aliás, o próprio narrador faz alusão freqüente à sua localização, a lugarejos, vilas, cidades etc. que constam do mapa de Minas Gerais, do sul da Bahia, bem como dos campos-gerais de Goiás. Onde se localiza o sertão? Guimarães tem uma noção de sertão bem ampla e profunda. “Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então em toda parte não é dito sertão?... O sertão está em toda parte” (p. 09 da 6.ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1968. Todas as outras citações serão dessa mesma edição).
Neste mundo, a bela e simples “natureza” chama a atenção de Riobaldo com suas plantas e bichos. “Aí foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado: o aniz enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, se dobra logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco” (p.24). Também os pássaros e animais comparecem com seus nomes populares. “Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revoredo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das vacas devendo seu leite” (p. 24). Estes aspectos do sertão não são decorativos, eles envolvem o sertanejo em seu mundo e ser, levando-o à convivência e à integração com a natureza. Assim é que um passarinho e uma flor adquirem um significado especialmente sentimental e amoroso: “Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhas, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – a galinhalagem deles” (p. 111). Este par amoroso vai ter seu complemento numa bela e perfumada flor que de acordo com o momento muda de nome: “Casa-comigo... Dorme-comigo... liroliro” (p. 146). Outros “elementos” do sertão têm uma grande importância como o vento, os rios e as veredas. Esse sertão natural e geográfico compõe o âmbito e palco onde os homens vivem seu destino.
Um levantamento minucioso dos nomes desses lugares trouxe, no entanto, grandes surpresas. Ao lado de numerosos nomes constantes nos mapas geográficos, outros são pura invenção do autor. Por isso, para além de um mundo “cientificamente geográfico”, há muito mais um “mundo poético”. Na sua obra o geográfico se torna uma geopoética, onde há uma confluência de Ser-tão e Terra. Trata-se então de um mundo mítico, imemorial, onde há uma profunda ligação de todos com a paisagem, as árvores, os pássaros, todos os animais, todas as plantas, é uma ligação mítico-poética de mundo onde todos se irmanam numa grande aventura da vida: é o mundo. É nesse sentido que temos em Grande sertão: veredas não tanto um espaço geográfico , mas um lugar mítico-poético. O personagem-questão que efetiva esta profunda ligação é Diadorim, na medida em que ele é a alma e corpo telúrico de Riobaldo, ou seja, de cada um de nós.
O sertão como mundo-humano
O Sertão é a morada do homem. Por isso o sertão humano se mostra difícil e mutável. A luta do homem é a luta do sertão. “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (p. 374); “O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca...” (p. 443); “O sertão é do tamanho do mundo” (p. 59): “O sertão é sem lugar” (p. 268). “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (p. 121). Guimarães Rosa nos fala de um sertão histórico e de um sertão como mundo poético. O histórico, quando se passam as andanças e aventuras de Riobaldo, é anterior à chegada do “progresso”. É o sertão onde os bandos de jagunços exerciam um poder que fugia à autoridade constituída e ao mesmo tempo protegiam e eram protegidos pelos grandes fazendeiros. Era um sertão onde a palavra e a honra eram cumpridos à risca, mas que por outro lado fugia à separação e à distinção estabelecida pela lei. Para o jagunço não havia ordem e a desordem, o bem e o mal. Tanto que relata: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinho de metal...” (p. 17). O sertão está muito ligado à condição do homem como essência do humano. Não é, pois, o sertão sócio-histórico o principal, mas trata-se da aventura humano do homem. Noutra passagem acrescenta: “O sertão tem medo de tudo” (p. 237). Os habitantes do sertão, ou o sertão humano, não são apresentados a partir de preconceitos culturais, como matutos ou qualquer outra qualificação cultural. Pelo contrário, surpreende neles seres humanos que têm seu saber e sabor, seus ódios e seus amores, sua coragem e seu medo, enfim são seres do sertão, seres da condição humana, nós. Uma pesquisa meramente sociológica nada saberá falar deste sertão poético-humano. Mas essa é uma das facetas mais importantes da obra. Rosa não escreveu uma obra sociológica, mas poética. E é nesse horizonte que devemos dialogar com ela. Pois aí não se trata de qualquer mundo poético subjetivo, ou seja, de Guimarães Rosa, mas de todo leitor que atenda à provocação, como leitor atento, das falas de Riobaldo enquanto questões nossas.
Mas o que é mundo ? Não se trata aqui de querer qualificá-lo com qualquer adjetivo: regionalista, sertanejo, mineiro, ficcional, primitivo, latifundiário etc. etc. Será que ao acrescentarmos a mundo um adjetivo, não partimos do pressuposto de que já sabemos o que é mundo ? No entanto, não sabemos. A Terra eclodindo, manifestando-se no humano é o homem da Terra (ser-tão) sendo ser-humano. É desse humano do homem como mundo que se constitui o segundo ser-tão, mas jamais separado do primeiro. O mundo é o ser se dando em seu sentido. Nele todos estamos integrados nas veredas da história e nas radicais experienciações de eros e thanatos.
O sertão sagrado
Na medida em que o sertão é humano surge outra dimensão que marca sua presença de início ao fim: o sertão sagrado. Com este, um tema central: a existência e presença do diabo. O longo início do romance mostra como o sertão está povoado pelas muitas estórias em torno do diabo, de que são também testemunho os inumeráveis nomes a ele atribuídos. Exatamente para evitar nomeá-lo, porque do contrário, a força do nome provoca a sua presença temida. Por outro lado, o diabo é o símbolo do poder, daí a preocupação central e a dúvida de com ele se poder selar um pacto. Que poder advém no pacto ? O poder do sagrado.
O que é o sagrado? Não podemos confundir o sagrado com o religioso. Ele é mais. Ele é um mistério. Ele é o próprio Ser-tão. O homem ocidental experienciou de seis modos diferentes o sagrado: no mito, no religioso, na poesia, no místico, no pensamento, na metafísica. Essas seis facetas do sagrado percorrem profundamente Grande sertão: veredas.
O diabo é figura-questão do poder do sagrado. Por isso, ele está ligado ao nome, ao verbo, à palavra. Mas então trata-se do verbo e palavra poética, indicando este adjetivo muito mais que uma simples qualidade de certas composições em versos. Não. É o próprio ser~tão se manifestando poeticamente, é o vir à luz do ser no agir dos poetas. Poiesis significa ação de sentido. Isso fica evidente no momento do pacto. O personagem-questão, ou seja, o próprio poeta , invoca o diabo para que haja um pacto. E como ele o invoca, na hora decisiva? Ele in-voca Lúcifer. Esta é uma palavra latina que diz: aquele que é portador da luz.. A luz emergindo do caos é o ser se fazendo mundo pelo poder do sagrado, ou seja, pelo que é o portador da sua luz.
Pelas múltiplas manifestações e experienciações possíveis do sagrado, isto é, do Ser-tão, já podemos notar que o ser-humano tornando-se humano, ao se deixar atravessar pelo sagrado, nunca consegue dizer, isto é, manifestar o sagrado, só experienciá-lo. O diabo é um anjo anunciador e mediador. A tais experienciações é que Rosa denomina veredas. É que o ser-tão é tão grande, é tão misterioso, é tão abismal, é tão o Nada, que nós já desde sempre só nos podemos mover: “ - Nonada” (p.9).
Este Ser-tão misterioso do sagrado nos convoca a pensar o narrador Riobaldo dirigindo-se a nós, a nós leitores, na seguinte fala:
Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção (p.79).
Nesta fala, leitor, sou eu, é você que é conclamado a se abrir para esse mistério que : “ Ninguém ainda não sabe”. Mas há “ veredas, veredazinhas”. Atravessá-las só é possível pela abertura pelo diálogo-poético de escuta do Ser-tão.
Os três ser-tões são um só. Como disse Heráclito no fragmento 123: “Tudo é um”. Mas nós somos seres-humanos e o humano é de difícil escuta e conquista. Voltados para o aprendizado de conhecimentos geográficos, sociais, políticos, poéticos etc. etc. acabamos por nos perder em meio às múltiplas veredas de atividades mundanas e conhecimentos funcionais. É a rede e mundo funcional. Tudo isso é muito importante na nossa vida. Mas temos um encontro marcado para o pacto: o deixarmo-nos ser atravessados pelo poder do sagrado, o poder poético.
É este o apelo que nos faz, ao longo de toda a obra Grande sertão: Veredas, o personagem-questão: Riobaldo. Ele é a voz do poético.
Grande sertão: veredas não tem cinqüenta anos. Seu ser-poético são suas questões. E estas não têm tempo. São imemoriais. Elas se manifestando são o ser-humano se humanizando. Elas têm a idade do homem porque são elas que o constituem ser-homem-humano. Essa é, portanto, a idade de Grande sertão: veredas. O sertão é o lugar poético-telúrico do ser humano. Grande sertão: veredas é uma teluspoética.
O diabo e Deus povoam o Sertão como presenças do mal e do bem. O homem do sertão vivencia essas facetas e sabe que nele se manifestam. Por isso o homem do sertão é profundamente religioso. Três denominações religiosas se fazem presentes: o espiritismo Kardecista, o protestantismo e especialmente o catolicismo através das tão conhecidas missões. O missionário é um homem de Deus que através da sua palavra manifesta o seu poder. Rosa não se decide por nenhuma, respeita-as e as reverencia.
São manifestações do Sertão, porque este aparece como o grande enigma, o grande mistério. “O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?” (p. 451). Sem resposta, mas sempre à sua procura, reconhece o quanto é pequena e insuficiente a nossa razão para alcançar o mistério do Sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. “Só umas raríssimas pessoas – e só essas veredas, veredazinhas” (p.79). Este Sertão interior e exterior nos transcende. É o Sertão-Mistério.
Eis o Sertão de Guimarães Rosa. Ler a sua obra é percorrer nela e com ele essas veredas, essas veredazinhas do Sertão.