A DOAÇÃO LIBERTADORA DA NÃO-AÇÃO
Uma interpretação do pensamento de Chuang Tzu
André Vinicius Lira Costa
Neste breve ensaio, interpretaremos o pensamento de Chuang Tzu com ênfase nas questões da felicidade e da liberdade. Sua obra, além da distância cronológica de mais de vinte séculos, também apresenta dificuldade para o leitor ocidental por integrar a tradição oriental de pensamento. É claro que, como tentaremos pensar, o problema não reside aí, mas mais especificamente na tradição metafísica do Ocidente. A profundidade da obra exige algo à parte de todas as teorias e nomenclaturas, do afã conceitual e funcional que se fundamenta na razão e no objetivo, na complicação teórica deixando escapar o simples e o essencial. Todos os homens, como homens, estão radicalmente no seio das questões. Apresentá-las e vivê-las das mais diversas maneiras é o que faz o homem e o que o homem faz.
A via habitual de aproximação seria ler Chuang Tzu com o olhar do ocidental moderno, buscando as linhas gerais da doutrina, respostas rápidas e exteriores para os problemas, com o arcabouço de séculos de “filosofia” e, mais modernamente, de “ciência”, cujas formações e desenvolvimentos foram diferentes dos do Oriente. Isso não exime o Oriente de um elemento humano que seja também expressão do que conhecemos como filosofia e/ou ciência. A riqueza do real se mostra por se desdobrar tanto no visível (paradigmático), quanto no invisível de que o visível advém (aparadigmático), sem terminar em nenhuma das dimensões. Pelo contrário, é o movimento que os reúne e mantém juntos, num “paradigma poético”. É pela abertura essencial do homem para o mundo, sua existência, que os homens se unem e se especificam, na medida em que humanizam essa abertura com diferentes visões do real. Esse compartilhamento das questões é que, em primeira instância, possibilita o diálogo e a compreensão e entendimento que dele podem resultar.
O que Chuang Tzu nos diz a respeito da felicidade e da liberdade? Em “A Grande Sabedoria”, provoca (1) :
A grande sabedoria vê tudo num só.
A pequena sabedoria multiplica-se entre as muitas partes.
(...)
O prazer e a raiva
A tristeza e a alegria
Esperança e perdão
Fraqueza e firmeza
Impaciência e preguiça:
Todos são sons da mesma flauta,
Todos são cogumelos do mesmo úmido mofo.
Dia e noite seguem-se uns aos outros e vêm
Até nós, sem vermos como eles brotam!
Poder-se-iam ler facilmente as duas primeiras passagens do texto acima numa perspectiva metafísica: o “grande”, adjetivo, designa uma sabedoria mais desejável do que a “pequena”, porque dá um nível mais fundamental de sabedoria. Haveria então duas sabedorias, distintas pelas qualificações e pelas predicações que lhes indicam uma função. Contudo, a interpretação dessas passagens exige mais calma do leitor. O ser pequeno e o ser grande indicam vários modos do mesmo ser, sem excluir outras. Dessa forma sempre incluem o mistério por que o pensador pode se interrogar. A sabedoria, portanto, é a mesma. Suas duas qualificações não lhe acrescentam nada, apenas di-mensionam uma perspectiva de movimento. A grande se torna pequena e a pequena se torna grande no movimento de dimensionalização. Elas necessitam uma da outra para se constituírem como sabedoria: da mesma forma, o tudo reúne a singularidade de cada parte num todo. O tudo é a parte que é todas (2). Vendo tudo num só, cada parte pode participar do todo, se multiplicando em muitas. A sabedoria é pequena por se multiplicar entre partes, não por ser inferior. Ela apenas situa o ponto da parte. Como a sabedoria não é só pequena, mas também é paradoxalmente grande, ela habita entre as partes, isto é, na distância misteriosa entre as partes que as aproxima na união do todo. Cada parte só pode ser parte se o vazio que as separa também for o mesmo que as une. O que separa também recolhe: sabedoria.
A conjunção “e” une duas coisas discretas conceitual e graficamente, como prazer e raiva, tristeza e alegria. Entretanto, essa concepção já pressupõe que são duas coisas distintas e excludentes que podem ser tomadas juntamente pela conjunção que apontamos. É um momento do movimento (3). A partir da interpretação da sabedoria, o “e” torna-se o vazio entre as muitas partes, a pequena sabedoria que permite à grande ser grande, ou ver tudo num só: é o que o som não diz que configura as músicas, é também todas as músicas ainda por vir, reunidas no silêncio da flauta. Cada momento musical é singular pelo “e” que se multiplica entre os sons e as músicas. Ver tudo no silêncio é buscar a divisão de todas as multiplicações, buscar o uno. Na escuta, na busca, se dá a sabedoria tanto em sua grandeza quanto em sua pequeneza. Tal tarefa se apresenta difícil e complexa, mas pode ser igualmente fácil e simples. Não precisa haver diferentes flautas para haver diferentes sons. O músico é sábio, pois faz com a mesma flauta diferentes sons, que na realidade são os mesmos, compondo diferentes músicas. Que também são a mesma, uma e sempre a mesma música que uma flauta tocará. E todo cogumelo, por mais que seja entendido como à parte do outro ou dos outros, se origina de um mesmo mofo. O úmido nos remete à água, que dá as condições tanto do mofo, quanto dos cogumelos. O úmido do mofo dá vida aos cogumelos. A fluidez e o incerto movimento da água, o silêncio da flauta e o entre das partes são também o mesmo se doando de diferentes formas. Já nessa última frase apontamos as diferentes partes que se reúnem num todo, sem abrir mão de sua partição.
O mesmo compartilhar de um princípio vemos na articulação de dia e noite. De acordo com nossa interpretação, também dia e noite seriam partes conjugadas num todo. Esse todo, em noite e dia, se dá não pela sucessão das partes, ou a maneira como cada um segue ao outro, cronologicamente. Percebe-se que noite e dia se manifestam ao homem, vêm até nós, efetivamente. Eles se seguem E vêm até nós. Em se seguindo, se apresentam ao homem. Contudo, prestemos atenção ao verbo “vir”, um verbo de movimento que em si conjuga o trecho com que dialogamos. Na manifestação da claridade do dia e da obscuridade da noite poderíamos nos manter, mas isso seria apenas tomar dia e noite como sucessividade, como alteridade excludente. Quando nos interrogamos de onde vêm noite e dia, ou pelo seu originário em comum, o princípio que dividem, um deixa de ser tomado em função do outro, mas apenas em si mesmo e no lugar singular como um-no-todo. Cada dia e cada noite passam a ser únicos. Há esse princípio, esse lugar de onde brotam e se dão à visão do homem. Esse originário in-visível que não vem, que sempre escapa ao homem, mas está sempre presente (ainda que na ausência) nas suas partes, doações de dia e noite, é ao que Chuang Tzu chama atenção. Se cada dia é um novo dia, ainda que brote do mesmo lugar misterioso, o inesperado e o inexplicável podem também fazer brotar o extraordinário. Quando o homem se dá conta dessa simplicidade, questiona suas complexidades, medos e limitações, se lançando para além de seus limites e vontades. Cego para os sentidos, as lógicas e as vontades, torna-se sereno na unidade harmônica das partes.
O exercício de se desnudar, de se cegar para as doutrinas, as recompensas e as percepções imediatas é, em acordo com o rasgo que o questionamento traz, doloroso. Esse exercício, porém, não se origina de uma decisão consciente do sujeito. É por isso que, se Chuang Tzu aponta para esse sentido de existência poética (que os sistemas religiosos e políticos deixam de lado ou pressupõem), ele precisa também levantar a questão do método. Se não se decide ser sereno e unido ao universo, como é que isso se alcança? Criticando a funcionalidade das classes e dos utilitarismos, Chuang Tzu diz, em “Vida Ativa”:
1 Onde estaria o jardineiro se não houvesse mais erva daninha?
2 O que seria dos negócios se não existisse o mercado dos tolos?
3 Onde estariam as massas se não houvesse pretexto para aglomeração e barulho?
4 O que seria do trabalho se não houvesse objetos supérfluos a fabricar?
5 Produza! Obtenha resultados! Faça fortuna! Faça amigos! Faça inovações! Ou morrerá
6 de desespero!
7 Os que se aprisionam na maquinaria do poder não se alegram, a não ser na
8 atividade e na modificação – o estridar das máquinas! Quando uma ocasião para agir se
9 apresenta, são impelidos à ação; não se podem ajudar mutuamente. São movidos
10 inexoravelmente, como a máquina de que constituem uma peça. Prisioneiros no
11 mundo dos objetos, não têm escolha, a não ser se submeterem às exigências da
12 matéria! São pressionados e esmagados por forças externas, pela moda, pelo mercado,
13 pelos acontecimentos, pela opinião pública. Nunca, em toda a sua vida, recuperam o
14 bom-senso! A vida ativa! Que lástima!
Indicamos que há três movimentos na passagem citada. O primeiro vai da linha 1 até a 4, o segundo da 5 a 6, e o último da 7 a 14. Os três movimentos, em “Vida Ativa”, interagem de forma dialógica, onde a obsessão pelo aspecto funcional da vida é triplamente criticada, sendo o último movimento aquele que interpreta e responde aos questionamentos levantados nos movimentos anteriores, e os aprofunda. Vejamos a especificidade de cada um.
O jardineiro cuida do jardim. Nesse cuidado, a erva daninha, a erva estrangeira a um determinado jardim, é evitada e combatida. Sua evitação se torna o zelo da atividade de todo jardineiro. Dessa forma, o jardim rende e produz mais, ou se torna ele mesmo um produto que possa ser mais bem valorizado pelo mercado de negócios (4). Dentro dessa articulação hierárquica, Chuang Tzu questiona: por que ficamos com a impressão de se perder o de um jardineiro se um jardim não possuir uma erva daninha? Exatamente porque a ação de cuidar do jardim se deixou possuir pela atividade, pelo controle do jardim e de sua singularidade (incongruências que se tentam controlar). Em outras palavras, não lemos “jardineiro” como o homem que habita o jardim ou dele cuida, mas como aquele que trabalha ou tem por emprego a função de, por critérios estéticos e/ou mercadológicos socialmente estabelecidos, tratar objetivamente de um jardim.
A imagem-questão da erva daninha, então, torna-se importante, porque é ao mesmo tempo o que impede a atividade de se consumar totalmente (a adequação dos jardins), mas o que também incita e motiva a jardinagem. É ao mesmo tempo causa e conseqüência.
Esse co-pertencimento vemos também na linha seguinte: onde repousa a essência, isto é, a utilidade que motiva a existência dos negócios, senão no mercado de tolos e tolices? A fragilidade de nossas construções sócio-econômicas leva Chuang Tzu a apontar que o sentido de nossa existência não se situa nesse plano, não se reduz a ele nem é por ele determinado. Os negócios, para se manterem como tais, precisam assegurar o mercado dos tolos e a tolice do mercado. Os negociantes precisam revolver em torno de seus produtos e de suas técnicas, na objetivização de coisas a serem consumidas por quem verdadeiramente nunca quis ou precisou. Isso porque os produtos se negociam, mas nunca uma própria coisa, ou antes, o sentido da vida. Não se negocia a coisidade da coisa, nem o sentido da vida de cada um. Sem mercado dos tolos, só há o inegociável para se negociar, o nada para ser dado, e o homem pode ter a chance de pensar e viver livremente. Se dermos valor aos produtos e aos negócios, obviamente daremos menos valor a tudo aquilo que não se situa nessa escala. É uma escolha. O que não existe como produto e como negócio? O homem pode ser negociável? Perguntas difíceis. Contudo, o negócio pressupõe um controle e uma valoração feitos por um homem. Ora, supor o homem negociável nos parece tão absurdo quanto supor um negociante e um negociado totalmente atravessados pela razão e pelo abstrato conceito de valor. Tudo seria claro e manifestado para que o homem com ele possa operar e nesse mundo finalmente se situar. Essa impossibilidade está dada, entre outros, pelo simples dado de que o homem, tolo que seja, permite que sua sabedoria humana se insatisfaça com seus produtos consumidos, indicando que há algo mais radical e urgente a que não se está respondendo. Dessa forma, deixa-se em segundo plano o controle sobre as coisas, sobre o homem, até mesmo, idealmente, sobre a morte. A necessidade de negociar, de valorar e de possuir riqueza material vai perdendo o sentido, porque vê-se nesses caminhos um sentido que não é o essencial. Dá-se falta do sentido dos sentidos. Da mesma forma, são criticadas as massas e o trabalho. O falatório da vida alheia, cheio de juízos calcados nos preconceitos e nos medos de cada homem, afasta a massa do pensamento e da percepção da insuficiência desses sistemas que criaram para si mesmos. O trabalho, da mesma forma, perde a simplicidade da co-laboração com os outros homens. A necessidade dos produtos reduz o trabalho à produção. Essa produção parte da objetivação do mundo e insere critérios externos e universais para o fazer e o coabitar no mundo de cada homem (5).
Os ecos da perspectiva do primeiro movimento, ou o questionamento em forma de pergunta de algumas das relações ditas básicas e essenciais do homem, ressoam no segundo movimento de maneira imperativamente irônica. A obsessão pela produção se torna a voz que fala, ao invés de ser o ponto de vista criticado: “Produza! Obtenha resultados! Faça fortuna! Faça amigos! Faça inovações! Ou morrerá de desespero!”. As exclamações chamam atenção para como tais ordens se introduzem nos homens e eles mesmos as repetem e agem em função delas. É, aliás, o que dá título ao fragmento: “Vida Ativa”. Que resultados são esses que devemos obter? Será que precisamos genuinamente deles, são um apelo nosso? Ou será que estamos sendo tomados pela superfluidade, ou por uma maneira de viver socialmente aceita? Que fortuna é essa? O que ela proporcionará? E qual o lugar desses amigos que fazemos? Querem eles buscar entretenimento na confusão e desespero diante da vida? Podem eles, por outro lado, estar instigados pelo mistério da vida e empenhados em compartilhá-lo serenamente conosco?
Todas essas perguntas estão articuladas nos imperativos do segundo movimento. Elas se focam na última e mais importante pergunta: morreremos de desespero ao não conseguir realizar as outras ordens? O que é morrer para que isso seja acarretado pelas ordens? De que forma elas se ligam aos vivos para que causem morte? Inversamente, seria legítimo supor que plenifiquem a vida se cumpridas?
Vemos aí duas dimensões: a que diz que se morrerá de desespero, e a que diz que não se morrerá. O que ocorre é que a vida, quando tem por horizonte as obrigações e as metas, se sufoca e se desespera. Diante da frustração de não alcançar esse horizonte, o desespero pode levar o homem a, espiralmente, se angustiar mais e mais. Dessa forma, vai morrendo para a vida; a busca da felicidade e da liberdade acaba se tornando confusa e sem sentido. O brilho de cada dia e de cada noite é deslocado para as supérfluas liberações momentâneas dessa angústia, e mais uma vez não se percebe como brotam dia e noite. Por outro lado, pode deixar de esperar, se des-esperar de maneira a ver como a montanha de compromissos no horizonte pode ser muito pequena. Quando a urgência de tudo ver, cumprir e saber é ungida pelos óleos da paciência, a montanha de areia se desfaz, e a cada passo na caminhada o horizonte se faz e se refaz, e todo momento é novo e acontece. Nesse sentido, é preciso se des-esperar para aprender a esperar; é preciso morrer desesperando-se para aprender a viver esperando. Não mais esperando as coisas de antes, mas uma silenciosa aprendizagem de si e do mundo, com a calma do camponês que cultiva e colhe seu destino no lavrar. É importante ressaltar que aquilo que os imperativos nos informam nas linhas 5-6 também tem lugar nesse renascimento: as produções, os amigos, as inovações. Entretanto, eles surgem mais como uma parte, uma dádiva graciosa do viver, do que algo que surge a partir de um desempenho social, como a diferença que fizemos entre ser um jardineiro e cuidar do jardim.
Em 7-8, Chuang Tzu diz: “Os que se aprisionam na maquinaria do poder não se alegram, a não ser na atividade e na modificação – o estridar das máquinas”. Seria essa, de fato, a alegria do homem, condicionada ao “estridar as máquinas”, dos objetos à sua volta? Como se diz logo depois, a alegria do homem é tanto identificada com as máquinas que ele mesmo se torna uma, ou parte de uma. Vira prisioneiro dos próprios objetos que concebeu e se assenhoreou, acabando por se tornar um (6). Cremos que essa prisão não indica nem concede felicidade e liberdade ao homem. Tudo nessa prisão é claridade: não há barras e nem para onde ir, apenas para frente e sempre adiante. Essa liberdade do sujeito não o liberta de ser um sujeito, ou não se permitir ver como parte de um todo, ou todo em partes. Aqui está se tratando do poder: não há nada maior do que ele mesmo. Não há lugar para os mundos míticos e sagrados: são transfigurados para o homem e intelectualizados, arquetipizados. Dessa forma, o que resta é menor e cognoscível.
Todo esse processo é uma forma de tentar alcançar a felicidade e a liberdade pelas reduções ou pelas generalizações. Os dogmas religiosos erigem um guia de felicidade e liberdade que todos seus discípulos devem seguir, na tentativa de superar a morte na vida. Supõe-se que: haja um sistema que valha para qualquer homem; a morte não possa proporcionar liberdade e felicidade; vida e morte sejam dissociáveis. Tais assunções são as mesmas dos sistemas políticos, que de antemão determinam o que um homem possa ou deva fazer (7). O que a busca e acumulação do poder proporcionam é uma via distinta da “iluminação” religiosa: se antes a humanidade do homem era vista em suas falhas e se tentava abstrair delas numa vida superior, agora é o inverso: o espírito modificador e dominador é que sobressai, resvalando na vida material, na acumulação de riquezas. Ambos os pontos de vista partem de um primeiro, em comum: o homem está cindido, e jamais é visto como um. Para tal, deve cumprir uma série de exigências e tomar decisões que o conduzam, finalmente, a este termo de plenitude. Esse ponto de vista em comum vê a liberdade e a felicidade na distância e a fazem uma a ser atingida. A partir do momento em que a felicidade e a liberdade ficam confinados no escopo dos objetivos a serem cumpridos, os homens só se alegrarão “na atividade e na modificação – o estridar das máquinas!”, porque só permitirão um tipo de alegria maquinal surgirem nas suas vidas, já que será sempre oriunda dos resultados, dos prazeres, dos objetos.
Como se pode querer ser feliz e livre sem que efetivamente se transformem em objetivos em cujo prol se deva trabalhar? Isso supõe que já não somos felizes, e que ainda precisamos fazer algo para ser. O caminho para ser feliz não se sabe. Contudo, o que Chuang Tzu busca indicar é como os caminhos propugnados normalmente para tal não nos fazem felizes, apenas nos frustram mais. Por isso, “Vida Ativa” vai deixar surgir, no inaudito, o mistério de ser feliz. Então, poderíamos nós conceber que Chuang Tzu está nos falando de uma vida “não-ativa”? Não, se entendermos “não-ativo” como a contemplação destacada dos fenômenos do mundo. O sentido de não-ativo que persegue toda nossa interpretação é o de reconduzir o homem ao seu lugar, de cessar os juízos e atividades e permitir nesse silêncio plantar e colher sua libertação. Apresenta-se outra vez a questão do tamanho do homem, articulado entre uma grande e uma pequena sabedoria; do jardineiro que não quer transformar o jardim, mas ajudar a deixá-lo surgir. Esse deixar surgir é alimentar suas possibilidades, revelar o terreno de aquilo que já se destinava ser. Nesse agir que não-age, busca-se o princípio principiante, ou o mistério da vida que conjuga limite e não-limite. Assim, tanto jardim e homem se realizam. Sua singularidade caminha una ao Tao, ao misterioso paradoxo de que tudo se compõe. O Tao se perfaz reunindo tudo o que jaz distinto, e ilumina o espaço singular de cada distinção. É como se a grande e a pequena sabedoria fossem a mesma, pois do Tao, do mesmo-diferente. Quando essa singularidade se destaca da sua união, se anulando ou afirmando sobre sua medida, a felicidade e a liberdade também se destacam e ficam distantes, como fantasmas de um outro tempo. É por isso que o vazio do Tao se dá como o lugar em que cada uma de suas manifestações se manifesta e permite manifestar, isto é, toda música sempre acontece no silêncio de uma flauta.
O Não-Agir, então, dá a todo agir seu sentido e movimento. Ele lhes dá seu espaço-tempo e sua dimensão poética. Esse é aquele “bom-senso” de “Vida Ativa” que Chuang Tzu diz ficar oculto na vida maquinal do homem. O bom-senso sente bem o lugar próprio de cada fazer humano em seu percurso de realização. Como não situa a felicidade nos objetos e nos fatos, mas no acontecer poético de si a todo momento, o bom-senso não permite revolver em torno de informações e objetos. Com bom-senso, o poder pode pouco; os objetos não tem sujeitos e se radicam outra vez na unidade. É ao movimento da unidade a que o bom-senso presta atenção. Como pode haver unidade se todo homem não é tido como irmão, pela diferenciação do poder? Um irmão não é igual a outro, é mais sempre um do mesmo, da mesma mãe, do mesmo universo, do mesmo solo. O todo sempre nos lembra da simplicidade e necessidade do movimento no gesto de um abraço fraterno. O abraço genuíno sempre abraça o familiar, mas ao mesmo tempo o não-abraçado. O abraço abraça para soltar. Sempre e nunca juntos: é o que diz um abraço.
A verdade das verdades está na sola do sapato dos homens do saber a pular para alcançar suas idéias. O solo amassado, embaixo, se deforma e reforma cuidadosamente e sempre de novo, humilde e sem preocupações. A perfeita harmonia.
__________
(1) In: MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes , 1984. p. 54-56. Todas as citações de Chuang Tzu serão retiradas da referida obra .
(2)
Na esteira da filosofia ocidental, poder-se-ia dizer que não há síntese sem análise, dedução sem indução. Permanecem um caminho de pensamento enquanto possuírem o vigor de levar em consideração a dimensão dialógica desse caminho: a síntese parte de uma verdade única desdobrável em várias, que são a mesma da inicial. Uma parte necessita da outra, ou não é parte nem todo. Isso já repensa a natureza da verdade e o princípio circular do pensamento e da interpretação.
(3)
No que se exclui o -vi-, perde-se a visão das coisas que são , quer dizer: cada momento ser eternamente único reunido junto aos outros, no todo.
(4) Aristotelicamente, essa dinâmica é tida como uma das maneiras que a coisa tem de se manifestar. A coisa tem uma matéria e, conseqüentemente, uma forma. Além disso, ela pode ter um artífice e também servir a uma finalidade. Como, porém, a última categoria é a primeira em termos de importância, por determinar toda a natureza das demais , não só a função torna-se o traço principal da coisa, mas essa característica mesma fica alheia à própria coisa, porque repousa na interpretação utilitária feita pelo homem. Aí a coisa torna-se objeto.
(5)
Curiosamente, essa relação produção-produtor-produto é muito posteriormente criticada por Marx, ao apontar a separação entre o produto de trabalho e o produtor. Contudo, não chega a repensar a relação, só a tenta apreender dentro da dinâmica do próprio sistema (capitalista) e sua superação por outro (socialismo). Em outras palavras, ainda que tenha criticado essa relação e o esquema de poder a que necessariamente é vinculada, ainda se move num raciocínio epistêmico, apenas reordena esse esquema de poder.
(6)
A respeito disso, ver o filme “2001: Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick, 1968.
(7) Modernamente, há as promessas científicas de aliviar os males do homem ( como a morte ), ou até superá-los. Elas se apóiam no paradigma universal estabelecido pela formação do subjetivismo moderno. Entretanto, como Chuang Tzu nos faz apontar, até mesmo o percurso da filosofia ocidental de formar o sujeito é prefigurado na humanidade do homem, em suas possibilidades. Não é exclusivo do ocidental nem de um
conjunto de homens ver e querer dominar as coisas em sua volta , mas é sempre uma via possível de buscar a felicidade , ou a realização do homem.
Bibliografia
CASTRO, Manuel Antônio de. A ação e a caminhada de vida. s/d. Fotocópia.
______. “A leitura e os paradigmas”. Internet. Acessado em 15/08/2007. < http://travessiapoetica.blogspot.com/2007/08/leitura-e-os-paradigmas-prof_15.html>.
______. “Paradigma e identidade”. In: ______. Tempos de metamorfose. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
______. Que é isto – a filosofia. São Paulo: Duas Cidades, 1971.
HUMMES, Dom Cláudio. “Marx”. In: ______. História da filosofia. (Anotações de curso homônimo dado no ano de 1963 em Daltro Filho - RS).
LAO TSE. Tao Te King. Lisboa: Editorial Estampa, 1977.
MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 1984.
KUBRICK, Stanley. 2001: Uma Odisséia no Espaço. Filme. MGM, 1968.