A menina e a bicicleta: arte e confiabilidade
Manuel Antônio de Castro
Toda obra de arte é originária. Ela não é a-temporal. Pelo contrário, é o tempo em sua densidade máxima, porque na obra de arte acontece poeticamente o tempo da memória. É isso o que nos diz a palavra originário. A dificuldade em compreender e apreender o originário de toda obra de arte está em que nosso olhar já está a priori armado com algum suporte ou paradigma estético-formal ou ideológico salvacionista, para achar a sua função ou para classificá-la. E poderia ser de outra maneira? Não estamos já desde sempre jogados numa determinada perspectiva espácio-temporal? Só aparentemente. Originariamente quando olho não vejo o que meus olhos olham. Vejo só o que se dá a ver nos meus olhos. Essa é a diferença entre originário e origem. O que vejo, aparentemente, tem origem nos meus olhos. A luz na qual vejo o que olho já é um dar-se originário que possibilita toda visão, todo olhar. E sem a qual os olhos não vêem por mais que meus olhos olhem. Suportes e paradigma não constituem nem as obras de arte nem a luz que originariamente possibilita ver. O sendo de toda realidade é a luz de desvelamento em que todo velamento entre-acontece. O entre-acontecer de desvelamento e velamento é a própria verdade poética da realidade doando-se em Mundo e retraindo-se na Terra. Obra de arte nada tem a ver com formas e matérias. Estas assinalam o horizonte do utensílio em sua utensilidade, vista na luz do desvelar da obra de arte. Por quê? Porque causa é causa na medida em que a ela algo se deve: o utensílio em sua utensilidade.
Certamente tudo isto soa muito estranho para quem está formatado no ordinário dos conceitos correntes e não tem mais o espanto que toda obra de arte inaugura para quem está aberto para ele. O espanto é o entre-acontecer do extraordinário. É o entre-acontecer da obra poética. O poético é o entre-acontecer do espanto que toma de assalto os poetas e pensadores essenciais. Um outro nome originário para espanto são as musas.
Martin Heidegger é o pensador originário da obra de arte. Querer classificar seu pensamento como mais uma teoria estética da arte, entre as numerosas teorias modernas, é não compreender o que de poético traz seu pensamento. Se fosse mais uma teoria estética ficaria ainda nas banais e surradas teorias metafísicas dos suportes formais ou ideológicos cada vez mais fragmentados em novas correntes críticas (que de críticas só têm a aparência). Todo o empenho e desempenho do pensador é propor como penhor a abertura de pensamento para o sentido e o esquecimento do ser. Ser não é um conceito abstrato: são as possibilidades enquanto propriedades que cada um de nós recebe para poder ser no sendo o não-ser. Não é que a metafísica não fale do ser. Não faz outra coisa, ainda que abstratamente. Ela não pensa o ser como acontecer poético, mas como ser dos entes. Estes, substantivados, necessitam de um fundamento: o ser, separado dos fundados, mas no qual se apóiam, sendo aquele a causa destes. Não pode haver dicotomia de fundamento e fundado, porque o ser não é, pois se fosse, seria ente e não ser. Por outro lado, o que antes de tudo é é o ser. Este, como o originário de todo entre-acontecer, de todo sendo sendo o não-ser, é sempre paradoxal. Essa ambigüidade paradoxal presenteia-se e presentifica-se sempre na obra de arte. Mas, então, no lugar de matéria e forma (causas dos utensílios e dos objetos) teremos vazio e figura, terra E mundo. Eis porque não se pode perguntar pelo útil ou inútil da obra de arte, simplesmente porque a obra de arte não é utensílio nem objeto funcional, para operar o sistema e suas finalidades. A arte não tem finalidade para que se pergunte para que serve, qual é o seu “papel”. Todo sistema visa intervir na realidade. Toda obra de arte visa simplesmente desvelar o que ama velar-se, manifestar o que ama retrair-se, como nos lembra o pensador Heráclito na sentença 123: O desvelamento ama velar-se (Physis kryptestai philei). Mas um tal amar é originariamente ser, porque no desvelar-se de todo sendo há o apropriar-se do que é próprio. Isto é ser. Isto é amar. É nesse mesmo horizonte que o poeta-pensador Alberto Caeiro nos diz: Pensar é amar.
Pensar a obra de arte é no mais profundo de todo entre-acontecer crítico-poético pensar a misteriosa realidade (physis) como amor. É claro que pensar nos lembra sempre filosofia. E o que a filosofia tem a ver com o amar? Tudo e nada, pois amar é pensar. Quando a sabedoria se torna amor, então todo amor é filosofia. Filosofar enquanto amor é pensar. E pensar é amar. Arte, poesia, é amar em sentido originário. É que amar não é o mero derramar-se afetivo. É isso e muito mais. É fazer da fonte originária o próprio, é deixar-se apropriar pelo próprio, as propriedades enquanto possibilidades de ser. A obra de arte para que ela opere exige de nós muito mais que uma vivência estética. Solicita o desvelo, a ascese da doação, onde quem doa é a arte, é o amor. O ser não é. Doa-se. E doando-se é, ama. Só podemos ser poéticos, isto é, amar, quando no agir nosso presente e penhor é o amor, a poesia. Então a poesia deve ser o penhor de todos os nossos empenhos. No penhor de todos os empenhos a arte é amor, porque é a conquista da libertação.
Quando Heidegger, libertando-se de toda metafísica estética-formal ou ideológica, nos leva pelos entre-caminhos da poesia, da poética, conduz-nos à fonte de todos os caminhos: o originário. E nos faz isso pensando um dos famosos quadros que o pintor holandês van Gogh pintou, tendo como motivo o repetido apelo poético dos sapatos.
É necessário compreender que é na obra de arte que todo o sentido do utensílio chega a ser o que é. Na utensilidade do utensílio há mais do que funcionalidade e finalidade. Há o humano do homem, o mundo e a terra. À presença do humano no utensílio como mundo e terra, o pensador chama de confiabilidade. Mas quem a manifesta é a obra de arte. Eis o que ele nos diz do quadro de van Gogh:
Mundo e Terra: os sapatos
§46. Da escura abertura do interior gasto dos sapatos
a fadiga dos passos do trabalho olha firmemente.
No peso denso e firme dos sapatos se acumula
a tenacidade do lento caminhar através dos alongados
e sempre mesmos sulcos do campo, sobre o qual
sopra contínuo um vento áspero.
No couro está a umidade e a fartura do solo.
Sob as solas insinua-se a solidão do caminho
do campo, em meio à noite que vem caindo.
Nos sapatos vibra o apelo silencioso da Terra,
sua calma doação do grão amadurecente
e o não esclarecido recusar-se do desolado
inculto terreno do campo de inverno.
Através deste utensílio perpassa a aflição sem queixa
pela certeza do pão, a alegria sem palavras da renovada
superação da necessidade, o tremor diante do anúncio
do nascimento e o calafrio diante da ameaça da morte.
À Terra pertence este utensílio e no Mundo da camponesa
ele está abrigado. A partir deste pertencer que abriga,
o próprio utensílio surge para seu repousar em si.
A confiabilidade e o utensílio
§47 – Mas tudo isto talvez apenas observemos no utensílio-sapato do quadro [de van Gogh]. Pelo contrário, a camponesa apenas calça os sapatos. Como se este simples calçar fosse tão simples. Todas as vezes que a camponesa, à noite, num cansaço forte mas saudável, encosta os sapatos e no ainda escuro amanhecer novamente os pega, ou nos feriados passa por eles, então ela sabe tudo isto sem os observar e contemplar. O ser-utensílio do utensílio consiste certamente na sua serventia. Porém, esta mesma repousa na plenitude de um ser essencial do utensílio. Nomeamos isso a confiabilidade. Em virtude desta e através deste utensílio, a camponesa é admitida no apelo silencioso da Terra. Em virtude da confiabilidade do utensílio, está certa do seu mundo. Para ela e para os que estão com ela e são à sua maneira, Mundo e Terra somente estão aí dessa maneira: no utensílio. Dizemos “somente” e nisso erramos, pois a confiabilidade do utensílio doa ao mundo simples o seu abrigo e assegura à Terra a liberdade da sua constante afluência.(Martin Heidegger: A origem da obra de arte. Tradução: Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva)
A confiabilidade e a bicicleta
No entre obra-de-arte “E” utensílio vigora a confiabilidade. Ela assinala o ser essencial do utensílio. Implicitamente, nestas reflexões, há uma diferença radical entre utensílio e objeto. No vigor desse entre, enquanto confiabilidade, o utensílio é a porta de admissão ao apelo silencioso da Terra, desvelada e aberta no entre da obra-de-arte. Uma admissão que dá a certeza de Mundo, do nosso mundo. A certeza enquanto confiança é a confiabilidade proveniente do ser essencial do utensílio que doa ao mundo, simples em sua originariedade, cotidianamente a nossa acolhida, e assegura à Terra a liberdade de sua permanente manifestação. Para mim e para todos que respondem e correspondem ao apelo, sendo da mesma maneira, Mundo e Terra somente estão aí, na confiabilidade do utensílio. À confiabilidade do utensílio não basta a objetividade rácio-funcional do objeto. Há um pacto de fé, em que a realidade se dá como uma reunião que reúne ser humano, terra e mundo. É a con-fiabilidade.
Ao entre obra-de-arte e utensílio, Heidegger denomina Verlässlichkeit: confiabilidade. O que é? Eu creio que é mais do que a simples funcionalidade e, com isso, mais do que a certeza do funcionamento, como quando se pega uma bicicleta para ir brincar na praça ou encurtar o caminho entre a casa e o trabalho. A confiabilidade não está só e sobretudo no utensílio, no seu perfeito funcionamento. Nessa perspectiva, ainda só se decide ou espera que tudo dê certo, que tudo funcione e, nesse sentido, tudo está entregue à técnica, aos conhecimentos técnicos, ao sistema, ao operacional e sua cuidadosa conservação. Claro que isto é fundamental e imprescindível. Imagine-se que um avião em pleno vôo não funcione. Morte à vista. No entanto, quando Heidegger fala da confiabilidade algo se torna tema de reflexão. O quê? O que na confiabilidade é mais do que o funcionamento e a operacionalidade. O quê?
A menina e a bicicleta
Era uma menina de quatro ou cinco anos. No aniversário, ganhara uma bicicleta. Evidente, com rodinhas. Como se sabe, a bicicleta tanto funciona com ou sem rodinhas laterais. Ela é funcional. Mas para funcionar precisava da menina assim como a menina “precisava” da bicicleta. É nesse duplo “precisar” que se abre o múltiplo campo da confiabilidade como “entre”. O utensílio não precede esse “precisar”. Ele o realiza ou não nas mais diferentes situações. Mais. O utensílio como resposta ao “precisar” é a manifestação do que no precisar se precisa. O quê? Nesse precisar de um lado nos defrontamos com necessidades – sejam essenciais, sejam criadas -, e inventamos os utensílios para responder, atender e vencer as necessidades. A invenção não é algo puramente subjetivo, independente do ser do utensílio e de que ele consiste. Atender a e vencer as necessidades, é nesse sentido que o utensílio se torna funcional. A necessidade está em relação direta com a utensilidade e vice-versa. Porém, nesse duplo precisar, de outro lado, comparece algo que está além dessa utensilidade: a afirmação do que somos como afirmação da liberdade frente à necessidade. Nós precisamos ser livres e afirmar cotidiana e utopicamente nossa liberdade. A utopia, concretamente, é essa libertação. É a realidade enquanto verdade e mundo.
Quando a menina começa a usar a bicicleta com as rodinhas, estas são úteis porque lhe possibilitam andar sem cair. É só pedalar. A utilidade das rodinhas está acoplada à utilidade das rodas da bicicleta. É então que surge a necessidade de se libertar das rodinhas para a plena utilidade da bicicleta e a manifestação de seu ser enquanto libertação. É um precisar essencial. Esse libertar significa a afirmação do que é, das possibilidades do que cada um é, frente às possibilidades da funcionalidade da bicicleta no que ela é. A confiabilidade se funda no vigor dessa dupla possibilidade de ser no sendo.
Umas não anulam as outras, embora sempre as possibilidades de ser precedem necessariamente as que aparentemente são as primeiras, as possibilidades da funcionalidade, tanto que ser se pode atualizar e realizar de muitas maneiras e não só e apenas no andar de bicicleta. Poder ser é a possibilidade de ser na medida em que o ser é a possibilidade de ser enquanto poder. Nosso mundo se entretece nas múltiplas possibilidades dos múltiplos utensílios. Afirmar essas possibilidades inerentes ao ser humano e para ser humano, na sua relação com as possibilidades do ser da bicicleta – dos utensílios – é que é a confiabilidade. É o confiar em si, no que é e pode ser: livre. A confiabilidade é a presença constante da afirmação da liberdade frente à necessidade tanto externa: andar de bicicleta, livre, solta, sem a necessidade das rodinhas; quanto interna: a alegria de poder “manejar”, manipular o utensílio de acordo com o alegre e grantificante jogo, e o exercício e a realização das suas possibilidades de ser livre: ser menina com o ser da bicicleta.
Quem se der ao trabalho de parar e observar uma criança se libertando da presença das rodinhas e, concentrada, mas firme e confiante, começar a dominar a bicicleta, atualizando suas possibilidades, porém, muito mais as possibilidades que estão dentro dela, de cada um de nós, constatará a essência do utensílio: a confiabilidade. São pequenas quedas, novas tentativas, titubeios, paradas, retomadas, avanços, paradas, desequilíbrios, retomadas, uma luta firme pela afirmação de ser sendo, libertar-se, concretamente, pois tem confiança. Ela conseguirá. É questão de tempo. Consegue. Então, são arrancadas, freadas, voltas, corridas, curvas, aceleração, livres descidas ladeira-abaixo, concentrados esforços ladeira-acima, suave bater do vento no rosto, irromper no aberto da clareira da terra, olhar confiante em si e na sua relação com a bicicleta: a livre sensação de realização do que é: sendo alegre e livre e confiante no entre da Terra firme e a clareira aberta do Céu. Luz e desvelamento: libertação.
Isto ela só pode fazer porque tudo isso brota do confiar que lhe advém das possibilidades de ser. Por isso, quando se ensina a uma criança a andar de bicicleta, recomenda-se: não olhe as rodas, olhe para frente, esqueça os pedais, pedale, pedale, não pense na bicicleta, aja, pedale, seja poética. Não é pensando nas partes da bicicleta e suas funções, não é pensando se pode andar ou não, não é pensando nos outros que ela vai andar. É concentrando-se em si e nas suas possibilidades, no entre que reúne e põe em ação as possibilidades da bicicleta com as suas, dando-lhes sentido e realização. O sentido dessas possibilidades ela já o tem, que são as livres possibilidades de ser livre, que, já desde sempre, lhe foram doadas. Ela não as apreende e nem aprende olhando para fora nas circunstâncias. É um momento originário e originante, mágico e manifestante: sair andando, correndo, afirmando a liberdade sobre e com a necessidade.
A bicicleta, o utensílio, não está, não é, em função de um sistema. Seu sendo não se dilui na impessoalidade de um organismo, de uma rede de meras relações, sejam elas de que natureza forem: sociais, psicológicas, morais, religiosas etc. Sua coisidade como utensilidade está integrada na verdade do que a criança é enquanto é exercício de realização e afirmação: Livre, confiante, realizante de um mundo que a configura ao configurá-lo, um mundo enquanto realidade como realização de possibilidades realizadas. E a bicicleta manifesta também suas possibilidades realizando as possibilidades da criança. E então ela também chega a ser o que é pela sua integração num mundo que eclode a partir da manifestação da terra no ser da criança: no que ela pode ser pelo que ela é, e no que ela é pelo que ela pode ser. Confiabilidade. É o ser se manifestando em seu sentido: mundo e verdade. Verdade e realidade. Confiabilidade e libertação.
Quando um operário, que mora longe da fábrica ou da escola, pega sua bicicleta e faz o percurso mais rapidamente, esta ainda está realizando tanto as possibilidades que lhe são inerentes como as do operário. Porém, querer reduzir a bicicleta a essa utilidade é esquecer o que ela é em si e que o operário, além de ser operário, em primeiro lugar, é também possibilidades, e que estas não se reduzem à sua função de ser operário. Para pegar e utilizar a bicicleta na repetição automatizada do cotidiano, o operar do operário traz em si – ainda que latente – a confiabilidade, a possibilidade de ser em funcionamento. Ele a manifestou e conquistou quando como qualquer criança – ou posteriormente – teve o desafio de, a partir de si, “domar” a bicicleta e fazer vigorar o que lhe é essencial: a libertação. O operar do operário opera e só pode operar na vigência de suas possibilidades de ser, isto é, ser enquanto é um ser que manifesta seu ser na vigência e manifestação da liberdade. Obra-de-arte: techné e poiesis.
E assim o ser humano se vê sempre num “entre”, num “E” tão fundamental quanto abismal. Entre as necessidades essenciais – ser, manifestando-se como livre e funcional – ser, manifestando as possibilidades do utensílio enquanto doação de Terra e Mundo. É um “entre” único e fundamental. Quando esse “entre” deixa de vigorar, surgem as dicotomias tanto em relação ao essencial quanto em relação ao funcional. Tanto em relação aos outros quanto em relação às coisas, enquanto utensílios. Tanto em relação às palavras quanto em relação às coisas. É porque não há palavras sem coisas e coisas sem palavras. Se isso acontece é o duplo de conceitos e palavras e não de palavras e coisas. É epistemologia. As palavras E as coisas não são as palavras e os conceitos. Aquelas não podem ser objetos de nenhuma epistemologia. Só estes.
A obra-de-arte é o não-utensílio e por isso jamais se pode exigir dela ou reduzi-la à funcionalidade, porque a obra de arte é o próprio do homem se manifestando no que é: seu humano, seu Entre-ser no Entre-seres. Como obra-de-arte, o ser humano experiencia a libertação enquanto o que é e o faz experienciando o que é enquanto tempo, verdade, mundo e sentido originários. Em coisas simples. Como andar de bicicleta, jogar bola, construir uma bicicleta, uma casa ou estar disponível para o outro. Confiabilidade. Entre a obra-de-arte e a utensilidade do utensílio: Confiabilidade.
Já o utensílio e o ser humano formam um tempo, verdade, mundo e sentido circunstanciais diretamente relacionados ao operar do sistema e organismo enquanto corpo. Mas estes também vigem no “entre”, não fosse o ser-humano, um entre-acontecer. A ausência do vigor do “entre” é que cria as dicotomias, pelas quais se querem explicar ou este por aquele ou aquele por este (na velhíssima dicotomia e duplo metafísico e falsa questão: O que é primeiro a galinha ou o ovo?), ou ainda a incompatibilidade de um e outro. Todo primeiro pressupõe um segundo. Todo originário não pode pressupor nada porque é sempre presença, realização, acontecer: consumação do que é nas possibilidades de ser no como é. Libertação.
O utensílio e suas funções estão diretamente ligadas à forma, à matéria e às explicações causais eficientes. Tudo reduzido e reunido na causa final: a funcionalidade determinada pela finalidade. Mas como pensar a causa a partir da confiabilidade, do entre obra-de-arte E utensílio, do entre Terra E Mundo? Como e a partir do quê a causa pode causar, ser causa? Como e a partir do quê a bicicleta pode ser “causa/coisa”?
A obra de arte, sem funções, deixa-se atravessar e constituir pela Terra sendo Mundo e pelo Mundo sendo Terra, numa disputa amorosa de manifestação e desvelo no entre retrair-se e velar-se misterioso do poder fazer da necessidade a afirmação da liberdade. Sendo e não ente. Este, perdendo o vigor verbal do ser, substantivou a realidade que é sempre entre-acontecer.
No limite instável, mas discernível do não-útil e do útil, do não-funcional e do funcional, está sempre um entre. Um entre misterioso que une possível e disponível, necessário e livre. Ser menina E ser bicicleta: a menina e a bicicleta. É a confiabilidade: o a-ser-pensado.
Manuel Antonio de Castro