O Haicai em Niterói
Lena Jesus Ponte
Em 1993, em conversas com o poeta Luís Antônio Pimentel , tomei contato efetivo com um tipo de poesia da qual só tinha conhecimento superficial: o haicai. Pimentel, que já havia estudado e trabalhado no Japão na época da Segunda Grande Guerra, contribuiu para difundi-lo em Niterói (RJ). Avesso à prolixidade e à eloqüência, publicou, em 1953, o livro Tankas e Haikais, no qual se encontra a essência dessa poesia nipônica – espírito de síntese, captação sensorial da natureza, expressão de um instantâneo poético, como nesse preciso exemplo de sua autoria: Lento, um vagalume, / Qual uma agulha de luz, / Alinhava a treva...
Pimentel é fiel à métrica rigorosa de 5-7-5 sílabas poéticas do haicai japonês tradicional. Mas tem ampliado, de maneira ousada, o espectro temático do haicai para além da Natureza e das quatro estações. Encontramos, em seus versos, crítica social, lirismo, reflexão filosófica, erotismo... Chegou, mesmo, a compor uma geografia poética fluminense, com haicais descritivos de importantes municípios do Estado do Rio de Janeiro. E em 2007, publicou Haicais Onomásticos.
Outro escritor que também transitou por essa forma poética foi Jacy Pacheco. No livro Haicais, publicou setenta e quatro desses micropoemas, entre líricos e engajados. Nessa obra, o falecido poeta rendeu tributo àqueles que considerava modelos de haicaístas: Mestres do haicai? / Luís Antônio Pimentel, / Lyad de Almeida .
Lyad , deixando-nos no ano 2000, para tristeza de seus leitores e amigos, legou-nos uma obra extensa, permeada de filosofia e lirismo: Ah! Esta insistente / saudade. Tão insistente / Que é uma presença.
O poeta e publicitário Paulo Roberto Cecchetti divulga, de maneira sistemática, esse gênero de poesia, não só em livros de sua lavra, mas também em exposições. Decorrente da primeira, organizou e lançou Haicais Ilustrados, com textos e desenhos de vários autores. Neste ano 2008, comemorativo do centenário da imigração japonesa, partiu para a segunda exposição – “Do sol nascente ao calor tropical” – com poemas de sua autoria, ilustrados por Miguel Coelho, recentemente falecido. Cecchetti, em seus livros, atribui títulos a seus haicais. Costuma, em alguns deles, prestar homenagem a intelectuais, músicos, pintores e escritores. A seguir, um exemplo, em que alude à figura máxima do mestre do haicai japonês: BANANEIRAS – Secam, ao relento, / as folhas das bananeiras: / releio Bashô.
Moacyr Sacramento também se deixou enfeitiçar pela poesia japonesa: Na vida, poeta é / fermento: seu pensamento / faz crescer a massa . Em vários de seus textos, utiliza um esquema de rimas da segunda com a sétima sílaba no segundo verso.
Unindo haicais a um estudo-síntese sobre o budismo, o médico Vinicius Sauerbronn de Mello escreveu haicais meditativos em Poesia Budismo Haicai : Escutar em paz / o que diz a voz dos ventos / é sabedoria.
Poetisa da delicadeza, Neusa Peçanha encontra, no menor poema do mundo, uma forma cristalina de externar poeticamente sua sutil sensibilidade: O bonde da praça / entre balanços vadios, / é brinquedo triste.
Dois escritores perceberam e expressaram as semelhanças entre trova e haicai (a concisão, o uso de heptassílabo, o caráter popular): Sandro Pereira Rebel e Maria Apparecida Picanço Goulart. Em Lampejos, Sandro estabelece um paralelo entre os dois tipos de poesia. Já na introdução, apresenta uma trova (Meus versos somente almejam, / como simples pirilampos, / ser luzinhas que lampejam, / sem destino, pelos campos) e um haicai (A vida é lampejo: / o fim começa a acabar / no próprio princípio), unidos pela temática geral expressa no título do livro. Apparecida, em seu sugestivo Mutações, declara: “Ocorreu-me partir do verso de sete sílabas do haicai e chegar à trova”. Um exemplo: Brumas no caminho, / lua querendo brilhar, / e quem vencerá? metamorfoseia-se em Quando há brumas no caminho, / lua querendo brilhar, / a luz chega de mansinho / e faz a Terra encantar.
Leda Mendes Jorge publicou um livro com haicais bem canônicos, em sua maioria contemplativos da natureza. Destaca-se, entre outros, este primoroso poema: De manhã bem cedo, / garnisé esganiçado / desafina o dia.
Poeta estudioso desse gênero de poesia, Douglas Eden Brotto estabelece uma ponte cultural com os haicaístas do Grêmio Haicai Ipê, de São Paulo. Sob o pseudônimo de Guin Ga Eden, tem poemas publicados em antologia do Grêmio (De novo na estrada, / Os dias vão se alongando... / E meus pés mais trôpegos...) e nas páginas virtuais da Revista Caqui .
Gilda Uzeda, poeta e artista plástica, ilustrou seus próprios haicais em Três Linhas Apenas: O vale lá embaixo.../ aqui em cima a montanha... / olhar em viagem.
O mais novo entusiasta da poesia japonesa, o professor Roberto S. Kahlmeyer-Mertens, publicou Verdade – Metafísica – Poesia – um ensaio de filosofia a partir dos haicais de Luís Antônio Pimentel, no qual analisa as inter-influências dos pensamentos oriental e ocidental e conseqüente enriquecimento de ambas as formas de pensar e sentir a realidade. Consta também dessa obra uma inédita e enriquecedora entrevista do autor com o consagrado haicaísta.
Eu, Lena Jesus Ponte, publiquei Estações Interiores (os haicais em quatro estações, não climáticas, mas subjetivas: contemplação, lirismo, crítica e reflexão); Na Trança do Tempo (com fotos e projeto gráfico de Raquel Ponte); e Ávida Palavra (a terceira parte constituída de haicais). Tenho, também, associado meus textos à linguagem fotográfica em cartões poéticos e ainda em exposições como “Quatis de corpo e alma” (com fotos de Angélica Monnerat) e “Passeio poético e fotográfico por Niterói” (com fotos de Liane Arêas e Will Martins).
Alguns outros escritores que nasceram e/ou atuam em Niterói seduziram-se pelo universo do haicai, a exemplo de Bernadete Soares, Branca Eloysa, Edel Costa, Elen Felix, Elenir Moreira Teixeira, Gilson Rolim, Liane Arêas, Roberto S. Kahlmeyer-Mertens, Wanderlino Teixeira Leite Netto e Will Martins .
Já falecidos, Abeylard Pereira Gomes, Aída Godinho, Alda Corrêa M. Moreira, Fernando Elviro, Marilena Gomes Ribeiro e Olga dos Santos Bussade também contribuíram para a aculturação da poesia nipônica em terra fluminense. Certamente haverá outros que, no momento, me fogem à memória, rendidos a essa secular e sempre renovadora forma de composição poética.
Cabe, ainda, destacar os belos trabalhos de ilustração do inesquecível artista plástico Miguel Coelho para haicais de Luís Antônio Pimentel, Jacy Pacheco e Paulo Roberto Cecchetti.
A cidade de Niterói acolheu o haicai no evento “Japão: Ciência e Cultura em Niterói – 90 Anos de Imigração”, promovido pela Prefeitura Municipal de Niterói. Nove poetas apresentaram seus textos na Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) em 14/8/1998. Jacy Pacheco foi representado, in memoriam, por Wanderlino Teixeira.
Em outubro de 200, Luís Antônio Pimentel e eu apresentamo-nos no Café Literário Fernando Pessoa (coordenado por Itérbio Galiano e Roberto Santos), em restaurante no centro de Niterói. Pimentel abordou o haicai dos pontos de vista teórico e histórico. Eu li haicais de nossa autoria e de alguns autores locais, comparando diferentes temáticas e vertentes.
Em 15 de novembro de 2003, no Espaço Cultural Niterói, ocorreu o 1° Encontro de Haicai de Niterói, do qual participaram poetas locais e visitantes como Olga Savary, da cidade do Rio de Janeiro, e Antônio Seixas, de Magé. Foi uma tarde de palestras, recital e concurso-relâmpago.
Como se pode perceber, em terreno fértil Luís Antônio Pimentel, hoje com 96 anos (provavelmente o mais antigo haicaísta brasileiro em atividade), plantou a semente. E o haicai tem florescido em todas as estações.
Obras em que aparecem haicais dos autores citados neste artigo:
1. Cardumes (1998, Bloch Editores, Rio de Janeiro); Quintal (1997, Traço & Photo, Niterói) – Paulo Roberto Cecchetti.
2. 100 Haicaístas Brasileiros (1990) – antologia publicada pela Aliança Cultural Brasil – Japão / Massao Ohno Editor, S. Paulo, com participação de Luís Antônio Pimentel, Lyad de Almeida, Neusa Peçanha, Paulo Roberto Cecchetti. Jacy Pacheco, Douglas Eden Brotto, Aída Godinho, Bernadete Soares.
3. Estações Interiores (1997); Na Trança do Tempo (2000); Ávida Palavra – Lena Jesus Ponte. Editoração Ltda., Rio de Janeiro.
4. Haicais (1981) – Jacy Pacheco. Editora Cultura Contemporânea, Rio de Janeiro.
5. Haicais (1999) – Leda Mendes Jorge. Graph Plus, Rio de Janeiro.
6. Haicais Ilustrados (2007) – org. Paulo Roberto Cecchetti, com haicais de Douglas Eden Brotto, Gilda Uzeda, Leda Mendes Jorge, Lena Jesus Ponte, Luís Antônio Pimentel, Paulo Roberto Cecchetti, Wanderlino Teixeira Leite Netto e ilustrações de Alcione Marques, Aldo de Paula Fonseca, David Queiroz, Florentino, Gilda Uzeda, Miguel Coelho e Raquel Ponte. Nitpress, Niterói.
7. Lampejos (1998) – Sandro Pereira Rebel. Sol Nascente, Niterói.
8. Lua na Janela (1999) – Antologia do Grêmio Haicai Ipê, Edições Caqui, S. Paulo, com participação de Douglas Eden Brotto.
9. Mutações (1998) – Maria Apparecida Picanço Goulart. Sol Nascente, Niterói.
10. Poesia Budismo Haicai (1998) – Vinicius Sauerbronn de Mello. Gráfica Ferraz e Editora Ltda., Niterói.
11. Pra Lá das Estrelas (1993) – Moacyr Sacramento. Editora Cromos, Niterói.
12. Tankas e Haikais (1953) – Luís Antônio Pimentel. Impresso na Escola Industrial Henrique Laje, Niterói.
13. Tankas e Haikais (1961); Novas Tankas e Haikais (1964); Tankas e Haikais Selecionados (1974); Poesia-Síntese, Haikais & Outros Poemetos (1998, Editora Cromos, Niterói); Haikais (1992); Poesia-Síntese, Antologia (1992, edição do autor, Niterói); Novos Haikais (1994, edição da Livraria Ideal, Niterói); Mais Uma Vez Haicais (1995, edição da Livraria Ideal, Niterói) – Lyad de Almeida.
14. Três Linhas Apenas (2005) – Gilda Uzeda. Traço & Photo Editora, Niterói.
15. Verdade – Metafísica –Poesia – um ensaio de filosofia a partir dos haicais de Luís Antônio Pimentel (2007) – R. S. Kahlmeyer-Mertens. Nitpress, Niterói.
Enviado por: Belvedere Bruno