O AVESSISMO DECADENTISTA NA DESCONCERTANTE POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS
Leila Míccolis
Augusto dos Anjos sempre nos exerceu grande fascínio, principalmente porque sua obra contrasta com a imagem civilizada da belle époque brasileira: enquanto o país se tornava higienicamente asséptico, o poeta versejava sobre gosmas e outras viscosidades. Era a época em que a República combatia a febre amarela e a varíola, através dos mata-mosquitos e da vacinação obrigatória, sob o comando de Oswaldo Cruz, gerando no Rio, inclusive, a Revolta da Vacina, rebelião de populares e da Escola Militar , em 1904 , contra o que consideravam uma invasão de suas casas e um constrangimento à liberdade individual. Oswaldo Cruz também combateu o surto de peste bubônica em Santos e em outras cidades portuárias brasileiras, dirigiu a campanha de erradicação da febre amarela em Belém do Pará e estudou as condições sanitárias do vale do rio Amazonas e da região onde seria construída a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré . Enquanto isto, a poesia de Augusto dos Anjos ignorava tais medidas sanitárias e profiláticas em nome do progresso, e, remando em direção oposta, enfatizava as bactérias e epidemias que o governo tanto pretendia exterminar.
Não é de se admirar, portanto, que seu livro “Eu”, de 1912, publicado às suas expensas e a de seu irmão Odilon, pelo total de 550 mil réis e com tiragem de mil exemplares, fosse recebido com extrema estranheza e grande relutância. Os poemas de Augusto dos Anjos incomodavam à crítica, sempre acostumada à poesia romântica em sua eterna busca do belo. Considerados deselegantes e grosseiros, os versos do poeta paraibano não podiam ser recitados nos saraus requintados dos salões luxuosos da burguesia, ou da alta classe média da época, em meio a cristais translúcidos, tapetes persas e licores franceses. “Como em Cesário [Verde], persistia em Augusto o propósito de infecção e decomposição, certa volúpia feroz de escandalizar o burguês” – observa GRIECO (1996:83).
HOUAISS (1996:171) escreve que “era de ‘mau gosto' admirar, apreciar, amar ou ter em conta a poesia de Augusto dos Anjos. Seria, ademais, prova de imaturidade, vulgaridade ou incultura”. Embora tenhamos a informação, pela cronologia de sua vida (1996:37), de que, em 1928, a 3ª edição do livro Eu – Poesias Completas, editado pela Livraria Castilho, no Rio de Janeiro, tenha obtido extraordinário sucesso de público e de crítica (1996:37), ainda segundo HOUAISS (1996:171) só em 1951 é que ele teve maior aceitação, principalmente nos setores acadêmicos, quando Otto Maria Carpeaux, na 1ª edição de sua Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, considerou, contra a maré consagrada, Augusto dos Anjos um importantíssimo poeta.
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884, no Engenho Pau d'Arco, Município de Cruz do Espírito Santo/PB. Era o terceiro filho de Alexandre Rodrigues dos Anjos (falecido em 1905) e D. Córdula de Carvalho Rodrigues dos Anjos, conhecida como Sinhá-Mocinha. Sua família e sua infância com o pai, Dr. Alexandre, são magnificamente descritas por José Lins do Rêgo:
O açúcar não dá mais para sustentar lordezas. Pau d'Arco é engenho d'água. Pelas suas várzeas correm levadas, garantindo irrigação e uma safra segura. O senhor de engenho, porém, é um letrado. Ele não tira a gravata do pescoço, sabe latim, sabe grego, sabe ciências naturais. (...) As mãos são finas e manejam muito bem uma caneta. (...) E há Cíceros para ler, e há um clássico para o gozo de um quinhentismo exótico. O Dr. Alexandre tinha a casa cheia de meninos e todos são vivos e querem estudar. O tamarindo se transforma numa escola socrática. (...) A casa do Pau d'Arco não era uma casa alegre, os filhos do doutor, todos pareciam mais uns alfenins, não lhe saiu um único Carvalho, todos eram Anjos, todos sem o gosto da terra, sem a vocação para trabalhos rudes (RÊGO, 1996, p.134-135).
E acrescenta RÊGO (1996:135) que o Pau d'Arco, para o adolescente Augusto dos Anjos, (...) “foi a realidade de seu povo derrotado. O menino havia de perceber que a terra fugia aos pés de sua gente”. Realmente, em 1910, dois anos após a morte do padrasto Aprígio Pessoa de Melo – o patriarca da família –, o Engenho Pau d'Arco foi vendido.
Doente desde outubro de 1913, Augusto dos Anjos morreu de tuberculose, em 12 de novembro de 1914, em Leopoldina/MG, onde exerceu o cargo de Diretor do Grupo Escolar de Leopoldina por poucos meses (de julho a novembro). Muitos escritores confundem tuberculose com pneumonia e comentam erroneamente que sua poesia refletia sua vida doentia e o estado patológico em que viveu. A este respeito, diz-nos José Oiticica, que com ele conviveu:
Nunca me falou em doença; jamais o vi doente. Referiu-me apenas uma neurastenia antiga, passada inteiramente, e seguiu para Leopoldina. (...) O que atazanou a alma do poeta foi a luta pelo vil dinheiro. Outro fato de tristeza de Augusto, do seu pessimismo intelectual, foi a insuficiência filosófica contemporânea (OITICICA, 1996, p.112).
À neurastenia que Oiticica alude, GRIECO (1996:86) chama de flama da nevrose, visivelmente expressa, tal neurose, na tematização do mórbido, do nauseabundo, das viscosidades material orgânico. Eis o primeiro sinal decadentista que encontramos em Augusto dos Anjos, em sua própria vida pessoal: a nevrose.
Quanto a estudos comparativos, BARROS (1996:174-179) teceu diversas aproximações do nosso poeta paraibano com Baudelaire. Citaremos duas, apenas:
A identidade de inspiração entre esses dois criadores do sublime escatológico está muitas vezes, na junção, que fazem, do satânico, do trágico e do repulsivo com os símbolos mais convencionalmente cultuados da Moral e da Estética. (...) Ambos, como se vê, revelam uma concepção patológica dos grandes temas da Arte. Uma aberração do gosto estético tradicional que os singulariza. Percebe-se em ambos um complexo que escapou a Freud: o da autofagia. Manifestação que seria abominável, sem o milagre da transfiguração artística (BARROS, 1996, p.175-176).
LINS (1996:118) é de opinião de que “pelas alucinações macabras que atravessam a sua poesia, ele estaria mais próximo de Poe e Hoffmann do que de Baudelaire”. Já MURICI (1996:127-132) faz interessantíssimo paralelismo entre Augusto dos Anjos e Cruz e Souza, cotejando alguns poemas dos dois poetas, a fim de sublinhar os inúmeros “encontros de temática e até de expressões verbais” (id., p.128), entre eles..
Paralelismos à parte, embora a obra de Augusto dos Anjos seja considerada pré modernista (e aqui precisamos lembrar que o período em que a escola modernista se situa precisa de uma séria revisão, já há um bom tempo, sob pena de continuarmos no pós modernismo até hoje), no conjunto da obra de Augusto dos Anjos sobressai-se de imediato o avessismo, a reação através do oposto, manifestada em uma poesia de forte impacto e angulosidades. Comparando-o a Cesário Verde, GRIECO (1996:83) constata que: “Ambos gostavam dos nomes de moléstias e dos termos de químicas, dos contatos ásperos, dos perfumes ambíguos, das paisagens em desalinhos, das músicas dissonantes, vacilando entre o anjo e o macaco, o êxtase e o terror, o estupro e o sonho, (...) e expandindo-se em antíteses”.
Em Augusto dos Anjos, o artificialismo manifesta-se justamente através de uma terminologia científica, tornando a poesia prosaica, o que funciona como técnica parabática bastante eficaz na indução ao estranhamento: nesta aparente inadequação da fala poética reside a intensa ironia trágica que perpassa sua obra. No entanto, MEDEIROS E ALBUQUERQUE (1996:90), bem como Álvaro Lins, nos alertam para o uso inadequado ou o mau emprego de algumas expressões. Comenta LINS (1996, p.119) sobre Augusto dos Anjos: “(...) Ele tem com efeito duas faces: a do autêntico poeta e a do poeta vulgarmente sensacional, a do artista, com uma enorme riqueza de pensamento e sensibilidade, e a do artificial, com gritante roupagem de uma precária terminologia científica”. No entanto, mesmo com esta ressalva, o efeito de choque era atingido.
Ligados, portanto, a estes termos científicos tão próprios do poeta, existem três aspectos a considerar, os dois primeiros ritualísticos: o culto do artifício, do raro, e a preocupação filosófica de seu autor. Enquanto artifício, a utilização da fala poético-científica cria o teatro da palavra, a cena em que Augusto dos Anjos atua, uma cena fúnebre. E sobre a técnica estilística empregada, observa LINS (1996.127): “O principal efeito vinha do atrito de certas palavras para provocar um som de coisa seca ou partida, acompanhando o ritmo sonoro de suas vibrações e a cor escura de suas visões”.
Quanto ao culto do raro, mesmo que às custas da impopularidade, é tão visível no poeta paraibano que dispensa maiores comentários. Apenas como ilustração, sublinhamos este trecho de GRIECO:
Tudo fez ele para comprometer-se diante da glória, para dar náusea aos leitores, para desconcertá-los, afugentá-los com detalhes de enfermaria e necrotério. (...) E desandava a falar em intestinos, úlceras e antrazes, humos dos monturos, mosca da putrefação, fetos, vermes, bactérias, vísceras, carnes podres, placentas, cuspo, tosse, expectoração pútrida, aneurismas, escarros, incestos, caspa, vômito, asma, pústulas, antropofagia, cloaca, lázaros, escarradeiras, cancerocidades, odor cadaveroso, tétano, peçonha, apostema, escrofulosa, estrume, etc. (GRIECO, 1996, p.82-83).
No horizonte da devoção ao raro encontramos, ainda, o culto do Eu, que isolava os poetas decadentistas da multidão da doxa – do senso comum. O único livro de Augusto dos Anjos intitula-se: Eu – um eu singular, original, diferente e simultaneamente transcendente, por ser constituído de um átomo, de uma partícula cósmica. Um Eu, neste caso, portanto, voltado para questões existenciais, já que Augusto dos Anjos se preocupava com a “insuficiência filosófica contemporânea” – conforme consta do depoimento de José Oiticica.
Como FREYRE (1996:78-79), bem-humoradamente percebe, Augusto dos Anjos “foi um místico que substituiu nos seus versos o latim mole da Igreja pelo latim da história natural. Um latim com sotaque inglês e com sotaque alemão” – referência às influências que o poeta teve das obras dos naturalistas Herbert Spencer, americano, e de Ernst Haeckel . O poeta, na visão de OITICICA (1996:113), “preocupava-se com a Unidade das coisas e dos Seres, a evolução do Todo, a independência do seu próprio Eu, sua essência anímica proveniente da substância de todas as substâncias”. Neste sentido é que entendemos o Eu do poeta: dentro do conceito spenceriano, que percebia vida e morte como fatos puramente químicos. Um Eu menos egolátrico do que naturalista, e filosófico-existencial.
Não podemos nos esquecer, de mencionar na obra do poeta paraibano a dimensão da corporeidade outra , visto que, o corpo abordado por ele não é o mascarado pelo romantismo; é um corpo lúgubre, mais sujeito à repulsa do que à atração, e que convive o tempo todo, em sua constituição orgânica, com vermes e necroses. Em Volúpia Imortal, o prazer sexual não desaparece quando a carne apodrece, mas continua a arder, mais forte após perecer. E o poeta conclui, com alguma ironia e muita paixão macabra:
Surdos destarte a apóstrofes e brados,
Os nossos esqueletos descarnados,
Em convulsivas contorções sensuais,
Haurindo o gás sulfídrico das covas,
Com essa volúpia das ossadas novas
Hão de ainda se apertar cada vez mais!(ANJOS, 1996, p.356)
Há por fim que mencionarmos o modo com que Augusto dos Anjos percebe a cidade: não propriamente andando pelas ruas, mas flanando por suas ruínas.
Augusto dos Anjos foi um poeta que exibiu, nos seus poemas, retratos fragmentados da cidade. Não especificamente da cidade do Rio de Janeiro, mas de uma cidade anônima “ao mapa-mundi estranho”, onde se intersecionam ruas, becos, pontes, bulevares e cantos de imundície e pobreza. Evidenciando, com isto, a proposição de Beatriz Sarlo, segundo a qual a cidade não foi apenas um tema político nas primeiras décadas do século 19, mas também “um espaço imaginário que a literatura deseja, inventa e ocupa” conforme a inquietação e a imaginação de seus escritores. Eu traz um “novo” que não condizia com o aparato tecnológico da modernidade e muito menos prestava algum benefício ao progresso. Era um novo diferente, fora de qualquer modo diferente, fora de qualquer moda e de qualquer novidade, um novo estranho e radical (MACIEL, 1999, p.65).
Maria Esther Maciel considera que: “Pela via alegórica das ruínas e da putrefação”, tudo é visto por Augusto dos Anjos, “a partir de um olhar necrológico lançado sobre o espaço exterior”, sendo que “sua linguagem corrosiva e desarticuladora” é usada para
(...) necropiciar a realidade circundante (...) “Progresso” tornou-se a palavra de ordem dos cidadãos cariocas. E, como disse Nicolau Sevcenko, “acompanhar o progresso significava somente uma coisa: alinhar-se com os padrões e o ritmo de desdobramento da economia européia” (Id., p.64).
Como protesto, o poeta lança mão de sua arma feita de vísceras, bactérias, bacilos, parasitas e micróbios, infestando a cidade positivista da época. Nem todas as poesias de Augusto dos Anjos abordam esses temas, tão recorrentes e prediletos; porém são justamente estes poemas que aliam poesia e ciência, naturalismo e atmosfera funérea, que o imortalizaram, seja por seus escarros e escárnios, ou por fazerem com que a existência não se constitua em uma equação binária – vida e morte – mas seja percebida dentro de uma visão poética – holística e filosófica –, sintetizada muito bem no último terceto da poesia Contrastes , “Às alegrias juntam-se as tristezas, / E o carpinteiro que fabrica as mesas / Faz também os caixões do cemitério!...” (ANJOS, 1996, p.260).
A obra de Augusto dos Anjos vivencia extremada e radicalmente o culto do impopular, do artifício, do paradoxo, do eu, do raro, do original, do incomum, do bizarro, do estranhamento como parte integrante do belo, da nevrose, e apresenta em seus versos angustiados muito do atormentado labirinto do final de século. Cremos que, à luz dessa multiplicidade de peculiaridades decadentistas, talvez possamos contribuir para uma compreensão mais ampla de sua obra inigualável, considerada, não só à época em que foi escrita, porém até hoje, como uma desconcertante poesia de exceção dentro da cena literária brasileira.
Bibliografia:
ALBUQUERQUE, Medeiros e. O livro mais estupendo: o Eu. In Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.
ANJOS, Augusto dos. Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.
BARROS, Eudes de. Aproximações e Antinomias entre Baudelaire e Augusto dos Anjos. In Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.
FREYRE, Gilberto. Nota sobre Augusto dos Anjos. In Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.
GRIECO, Agripino. Um livro imortal. In Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.
GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina. In Augusto dos Anjos Toda Poesia (estudo crítico). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
HOUAISS, Antônio. Reportagem Cinqüentenário da Morte de Augusto dos Anjos . In Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.
LAFETÁ, João Luiz. A dimensão da noite e outros ensaios . Organização de Antonio Arnon Prado, apresentação de Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2004.
LINS, Álvaro. Augusto dos Anjos, um poeta moderno. In Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.
MACIEL, Maria Esther. Metrópole / Necrópole: a cidade alegoria de Augusto dos Anjos. In Vôo transverso – Poesia, Modernidade e Fim do Século XIX . Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Sette Letras/ FALE-UFMG, 1999.
MURICI, Andrade. Augusto dos Anjos e o Simbolismo. In Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.
OITICICA, José. Augusto dos Anjos. In Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.
RÊGO, José Lins do. Augusto dos Anjos e o Engenho Pau d'Arco. In Augusto dos Anjos - Obras Completas . 2ª reimpressão da 1ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1996.