CIDADES BRASILEIRAS

BELO HORIZONTE... êh, BELO HORIZONTE!

          O ônibus descia lotado do Achieta em direção ao centro da cidade. Mal se podia mover os pés quando o homem anuncia sua presença. Espremendo-se entre um e outro, vai ele dizendo repetidamente:
          — Belo Horizonte... Belo Horizonte!... êh, Belo Horizonte!...
          Procurando um olhar que o acolhesse, devolvia seu discurso.
          — Há muito tempo não ando de carro gente! Há muito tempo eu não ando de Ônibus! Belo Horizonte, Belo Horizonte.
          Pés descalsos, calça entremeadas de enormes buracos, camisa branca emplastrada de poeira, cabelos grandes e encarapinhados, odor sufocante de quem não sabe mais o que é banho. Com equilíbrio deficiente, só faltava cair no colo dos passageiros que procuravam, em vão, um meio de não se deixar encostar no infeliz. Medo de impregnar-se daquele cheiro, horror aos possíveis piolhos ou algum ataque inesperado de loucura.
          A pele escura e brilhante, ligeira barbicha, olhos enormes um tanto projetados. Apesar da evidente miséria, a explosão era de plena felicidade.
          — Belo Horizonte, Belo Horizonte! — dizia ele sorrindo a olhar os olhos da mocinha a seu lado. Ela joga o cabelo de lado e olha distante como se não visse ou ouvisse.
          Em meu canto, antevejo a próxima cena. O homem me encara. Um aperto invade-me o coração. Sentia pena. Era doloroso testemunhar a solidão daquele pobre coitado. Ninguém queria conversar, todos ignoravam sua presença. O silêncio de cada um parecia soar como: Não, você não existe.
          Penso em dizer-lhe alguma coisa ou dirigir-lhe o olhar, o medo toma conta. Estava exageradamente próxima, quase colada àquele homem estranho e repugnante que era, ao mesmo tempo, um ser humano como eu.

          — Há muito tempo eu não ando de ônimos. Há muito tempo mesmo! — insiste ele, tentando provocar o diálogo.
          Mas eu, fantasiando um possível ataque, com cenas que flutuavam desde um abraço forçado até ao estrangulamento ou uma facada no "bofe", paralisava-me, chegando quase ao pânico, não me atrevendo ao menor gesto de atenção ao requisitante. Sentia-me culpada, fria como os outros, e, ao mesmo tempo, uma criança indefesa.
          Uma estudante que ensaiava sua descida na próxima parada, é forçada a colocar-se frente a frente ao mendigo, já que ele se instalara bem à porta de daída. Talvez por estar próximo da liberdade e necessitada de socorro, resolve dar-lhe certa atenção, respondendo à sua pergunta:
          — Onde é mesmo a Praça Sete? Está perto daqui?
          A moça desce, o homem debruça-se ao capô do motor e dirige a palavra então ao motorista:
          — Belo Horizonte, Belo Horizonte!... É bem diferente do Rio de Janeiro, não é? — o motorista nada responde.
          — O Rio eu conheço todinho — acrescenta.
          Foi nesse momento que tive mais tranquilidade para repará-lo. Encontrei até uma certa beleza naquele rosto.
          — Belo Horizonte, Belo Horizonte!... — continuava.
          Chego ao meu destino. Dou sinal e o ônibus pára na Praça da Liberdade.
          — Olha só! — ele exclama entusiasmado. É igualzinha à Praça Princesa Isabel de São Paulo. Igualzinha, rapaz!
          O tom de voz firme, as palavras bem articuladas, a expressão revelava um razoável nível de inteligência, embora os pensamentos ruminassem tanto.
          Desço do ônibus e ainda observo, de longe, a movimentação de seus lábios em sua interminável repetição:
          — Belo Horizonte... êh, Belo Horizonte!...

Cláudia Coutinho

De: "Blocos - jornal/revista cultural alternativa nº 31, ano 7, março de 1998.

« Voltar