CIDADES BRASILEIRAS

E traço e teço meu texto

Brincadeira boboca, mas irresistível: Cataguases é uma cidade de primeira. Passou a segunda, não tem mais graça: ela também passa. Para quem gosta de dirigir, é um desatino. Mal começa, ela acaba. Nem bem engrena, ela termina. Não importa se o carro é mecânico ou automático, se a gente passa ou não passa marcha, ou se as marchas é que nos passam: na primeira acelerada, ela termina. Ou determina marchas-lentas: surgem do nada um trem que é um trem de transtorno, motociclistas avoados, bicicleteiros que parecem esquecidos da vida, (di)vagando nas vias onde o trânsito deveria escoar.
Mas nem sempre escoa, eis que a cidade já exibe, orgulhosa, seus engarrafamentos na hora do rush. Coisas de metrópole: Cataguases tem mais auto(i)móveis que Nova York. Há controvérsias? Resolve-se num só instante: basta checar (por logaritmo, é claro) a proporção carro-habitante. É uma cidade que não pede prise. Talvez por isso não entre em crise. E sejam poucos os acidentes. Que assim seja.
Meia-volta-e-meia saio dela pelaí – assim ao vai-da-valsa, ao suingar-do-samba, ao roquear do rock, ao tarantantan-do-tango, ao bolero-pra-quê-te-quero. Quer dizer: som na caixa (de marcha). Para Astolfo Dutra, quando bate uma vontade já agora impossível de rever meu caro Luiz Linhares. Para Itamarati, porque me agrada a súbita assonância dessa “pedra-ita” que “amara a ti”. Para o Glória, distrito que torna masculina a vila-fazenda do Major Vieira, primeva e primorosa. Para Mirai, quando – mira aí, minha menina – batem saudades de laranjas maduras à beira da estrada, aquela fruta que não vai dar no “avarandado do amanhecer”, que isso é coisa do baiano Caetano, mas no pequenino manancial de mineiras reinações de Mestre Ataulfo Alves. 
Para Leopoldina, às vezes & quase sempre, que isso aqui é um festival de controvérsias – e não é? Logo que pra cá voltei, final do século passado, costumava ir pra lá de madrugada, tomar café. Ninguém acreditava que eu pegasse estrada noite adentro pra tomar café. “Tem mulher no meio”, diziam. Pra quem quiser, rimam café & mulher. Mas, não aqui: era café mesmo. Num velho bar perto da Rodoviária, há uma parada dos ônibus que trafegam pela Rio-Bahia. Ali, no Centenário – não falei que o bar era antigo? –, há (ou havia?) café expresso a noite inteira. Então, Leopoldina by night era/é café no Centenário e gostar de dirigir, guiar pra desanuviar, guiar quando o trabalho trava, botar o carro na estrada pra ver se a noite vem socorrer meu texto. Sim, eu dirijo escrevendo.
Ou escrevo dirigindo. Sempre que o texto entala, pego o carro e saio por aí a pensar na morte da cachorra ou na do Ulysses Guimarães. Sim, no insondável mistério da morte direta e já. No súbito desaparecimento do Doutor Ulysses. E na pergunta sem resposta que me fez Tia Dalila, lá se vão mais de quinze anos. Internada no Pronto-Cordis, segurando-se no alto de seus quase noventa anos, Lilila vira-se pra mim no meio da noite, assim como quem não quer nada: - Meu filho, o mar devolve tudo que nele jogamos, não é? Então por que até hoje não devolveu o Ulysses Guimarães?.
Ó mar, ó mar, porque até agora nada do velho Ulysses voltar? Nada o Doutor Ulysses? Nada? Sigo eu me perguntando estrada afora, enquanto me anoiteço e me aconteço de encontro ao acaso, e torço e traço e teço meu texto. Som ligado, a voz de Cartola me inunda de poesia, e à estrada, e à noite perto da Aurora: “Deixe-me ir preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Quero assistir ao sol nascer/ Ver as águas dos rios a correr/ Se alguém por mim perguntar/ Diga que eu só vou voltar/ Depois que eu me encontrar” .
Então, Cataguases está logo ali, no clarão da antemanhã. E não há mais controvérsias: ela é um só entrecruzar de fronteiras eruditas e automobilisticamente semoventes, com ou sem marchas. De tudo um trem, um traste, um apito, um muito alto grito. Tudo fora dos trilhos: drama, geografia, manhã, etimologia, música, poesia. Como este texto, essas palavras que escapam ao meu domínio. Um cicio, um sussurro em fuga, quase algaravia. Uma reta, uma canção que se segreda. Uma curva, uma história que surge e some.

 

Novelhíssima Ponte Velha
(Centenário de Ponte Velha – Um Símbolo de Cataguases
(1915 - 2015 – Washington Magalhães)

          Washington Magalhães meu caro foto-escriba: o sino de Santa Rita acaba de bater quatro da matina, o que me fez pular da cama onde, acredite ou não, pensava em seu belo livro-homenagem ao Centenário de nossa Ponte Velha. Veja você: a Igreja de Santa Rita e a Ponte Velha, nossos dois ícones por excelência, me trouxeram aqui e agora pro meu escritório onde – madrugada adentro e afora – em plena presti/digitação bato com meus dedos não mais tão mágicos essas palavras, todas essas palavras que agora me ocorrem, e como sempre me socorrem.
           Soube que você me acreditou fulo da vida pela legenda da foto que saiu em recente matéria do Primeiro Jornal – onde meu amigo Jorge Fábio trocou as bolas quando num corriqueiro descuido de revisão chamou minha mulher Patrícia, não a Poeta, mas a Patrícia (do poeta) Barbosa de “filha do poeta”, este aqui. Mas que nada, meu caro! Eu e Patrícia rimos a mais não poder com o imbróglio. Afinal, quarenta anos nos separam e magicamente nos juntaram já há sete anos – e acreditamos para sempre. Muitas vezes, em viagens, eu a apresento a balconistas, quando em ocasionais compras, como “minha filha”. E de repente, sem mais nem porquê, nos beijamos na boca num pequeno escândalo “exterior”, capaz de suscitar “vaias íntimas”, como aquelas provocadas pelos meninos da Revista Verde já lá se vai quase outro século.
          Pois é a própria Patrícia quem me lembra a cada momento – desde que você nos entregou seu livro no escritório dela, dias atrás – que preciso escrever em homenagem ao seu “Centenário da Ponte Velha – Um Símbolo de Cataguases”. Mas outros afazeres me assomaram nesses últimos dias – uma viagem ao Festival de Cinema de Ouro Preto, para ver o (belo) filme de minha amiga Bete Martins sobre Elza Soares, o prefácio do livro de outra amiga, a poeta uruguaia Raquel Martínez, além dos preparativos para o lançamento do meu livro na Flip de Paraty, agora no início de julho. Isso sem falar num texto sobre o caro e saudoso amigo AfonSim, que não consigo terminar, além de alguns poemas em andamento. Tudo isso me afastava temporariamente de seu livro, que me aguardava há algum tempo aqui na mesa de meu escritório.
          Até que o sino da Igreja deu suas quatro badaladas e me trouxe aqui pro computador – só pra dizer, meu caro Washington, que seu livro já é parte da história de Cataguases. Seu livro, cuja feitura você generosamente compartilhou com nossos fotógrafos, escritores, poetas, pintores, todos esses artistas, gente de Cataguases, todos irmanados em louvar à Ponte Velha, recém-pintada. Gente de Cataguases demonstrando em preciosos depoimentos sobre a ponte, nossa bandeira, o afeto que se encerra em nossos peitos centenários. Essa gente toda louvando nossa velha-nova Ponte Metálica, novelhíssima em seu tom agora meio grená, meio avermelhado (soube que o Joaquim Branco andou dizendo que a preferia branca que nem ele: eu também e quase toda a torcida do Operal, campeão local).
          “Cataguases: os cataguases/ não, nunca pisaram aqui” – disse um dia o nosso poeta maior, Francisco Marcelo Cabral, sobre os índios cataguases – que jamais aqui estiveram. Agora os cataguases(enses), todos nós, que aqui pisamos a cada dia, devemos agradecer por esse livro que você nos oferece, viabilizado graças a esforços de nossos comerciantes e empresários quando, a bem da verdade, deveria ter surgido sob a égide dos poderes públicos. Mas, tudo bem: ele está aqui ao meu lado enquanto a madrugada avança – o seu livro, esse belo produto gráfico que me encara assim meio grená, meio avermelhado, à imagem e semelhança da Velha Ponte de agora.
          Por muito e muito tempo achei que fosse minha a Ponte Velha, tanto a mencionei em meus poemas, tanto a coloquei em capas de vários livros: não por acaso meu “pomba poema”, de 1977 – mas tempos depois, o “minas em mim e o mar esse trem azul” e, mais recentemente, o “cataminas pomba & outros rios”. A Velha Ponte que tanto fotografei, tanto filmei de vários ângulos, até mesmo num longo travelling a partir de um barco onde me encontrava navegando rio abaixo. Pensava que era “minha” e tinha mesmo ciúme e orgulho de ter sempre me lembrado e lembrado a todos do dístico profético de seu pórtico: “Pacificusne est ingressus tuus?/ Revertere ad me, suscipiam te”. Volte a mim, voltem sempre, que eu os receberei, braços abertos sobre o Pomba.
          Agora não, Washington. Agora passo a dividir com você a “propriedade” da Ponte Velha. “Assim que dei início ao projeto deste livro senti que o trabalho poderia ser uma obra coletiva (...) Imaginei um produto gráfico que valorizasse o tema. Uma publicação um pouquinho mais, digamos assim, luxuosa, que pudesse, por sua forma, impressionar e melhor persuadir”. Pois você conseguiu, meu caro: “um livro cujo estilo narrativo escorre entre os dedos da multiplicidade. Uma obra coletiva. Uma obra de todos. Uma obra feita por nós”. Não, quanto a isso não há sequer a mínima dúvida. Como a Ponte, seu livro ficará. Um comovente registro, Washington. Não há, não haverá, não cabem controvérsias. De quebra, um poema sobre a Ponte Velha, feito a pedido do Washington. Como a encomenda saiu maior do que o encomendado, eu precisei fazer uma versão reduzida para o livro. Aqui e agora o poema segue na íntegra. Quando o escrevi, a Ponte ainda não tinha sido pintada, estava descascando, uma penúria só. Daí o “ícone gasto”.

Ronaldo Werneck
24.06.2015


Vaivém da Ponte Velha
A Ponte Velha É Cataguases É a Velha Ponte

Pacificusne est ingressus tuus?
Por ela a gente chega, chega gente.
Revertere ad me suscipiam te.
Por ela a gente vaivém com a gente.

velha cataguases
                    velha ponte velha

cem anos sim
                       o rio-chão
o pomba passa
                   a ponte não

vã centenária
                  foi-se o alabastro
                 dói vê-la assim
                ícone gasto

                                                                            sós sobre o pomba
                                                              se subvive
                                             reflexos vãos
                                     nada sobre nada
                    do vão mais alto
        o tubulão
                                                        na corda bamba
                                                                                                                   o ator se atira
                                                                                                  desacordado
                                                                          em si deságua

                                       seu céu seu chão
agora é água
                         vida que vai
                                                  no vão do ocaso

          corpos sós corpos
                               torcendo o nó
do acaso sós
                                               desatinados
                                                                                 sós corpos sós
                                                                                            sós desde as grimpas
                                                          corpos sós corpos
                                                                                   sós sobre a ponte
                 ases à cata
águas do acaso
                                   ases do ocaso

                                                                  cem anos sim
                                                                                      o rio-chão
                                                               o pomba passa
                                                                             a ponte não
velha cataguases
                      velha ponte velha

Ronaldo Werneck
(
Cataguases, fev/2015)

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