Banquetes Literários das Almas do Beco
Nas primeiras décadas do século XX, os iniciados modernistas, capitaneados por Oswald de Andrade, tinham um reduto de encontros etílicos e culturais na Rua Líbero Badaró, no centro da capital paulista, o qual denominavam “A Garçonière”, onde aconteceram os registros das primeiras discussões modernistas que antecederam à Semana de 22.
Nessa confraria, os modernistas escreveram um diário coletivo, culminando no livro “O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo”, com duzentas páginas, expondo a intimidade daquelas pessoas com cartas, recados, recortes, colagens, cores, tintas, desenhos, poesias, prosa e um pouco do pensamento pré-modernista do grupo, que, mais tarde, explodiriam com a Semana de Arte Moderna.
Este “Diário d'A Garçonière” é um embrião do livro “Miramar e Serafim”, em cujo tema Oswald de Andrade buscou registrar o espírito modernista num mundo em transformação, cabendo esperanças para uma nova forma de fazer poesia. “Muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo, que, fraternalmente, se misturam para formar, no ambiente colorido e musical desse retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida”, escreveu Oswald sobre aqueles encontros modernistas.
Resguardando as devidas proporções, o Beco da Lama, no centro da capital potiguar, tem sido a veia nevrálgica da vanguarda cultural do Estado. Para o leitor ter uma idéia da importância da confraria bequiana, quando em São Paulo , os modernistas proclamavam o novo estilo literário vigente com o “Manifesto Antropófago”, o poeta Jorge Fernandes fazia versos modernos como “O banho da Cabocla”, “Tetéu” e outros, no Beco da Lama.
Vale ressaltar que o poeta Jorge Fernandes morava na rua Vigário Bartolomeu, rua paralela ao Beco, portanto um freqüentador assíduo da boemia natalense. Alguns professores da UFRN costumam dizer que Jorge Fernandes fez poesia modernista na própria "fase heróica" e, na época que Jorge Fernandes lançou seu “Livro de Poemas”, a idéia de modernismo ainda era muito frágil no Brasil, sobretudo no Rio Grande do Norte.
De acordo com os estudiosos da literatura local, Jorge Fernandes foi recomendado por Manoel Bandeira tardiamente, quando soube da poesia jorgiana, escrevendo em carta a Veríssimo de Melo: “Precisamos urgentemente da poesia do poeta Jorge Fernandes. Urgentemente!” O poeta Jorge Fernandes teve seus textos veiculados nas principais revistas modernistas paulistas, no glamour do modernismo.
Quando Oswald de Andrade se formou em Direito pela Universidade de São Francisco, seu pai, percebendo o talento jornalístico do filho, patrocinou a abertura do periódico “O Pirralho” para que Oswald pudesse escrever e expressar seu pensamento. Na mesma época, em Natal, o pai de Câmara Cascudo recuperou o jornal “A República” logo depois que o Príncipe do Tirol se formou em Direito, pela Universidade de Recife.
Cascudo era freqüentador costumeiro do Beco da Lama. Era sempre visto entre amigos pelas ruelas adjacentes ao Beco ao cair da tarde, buscando inspiração para mais uma “Acta Diurna” que seria veiculada nas páginas d'A República no dia seguinte.
Segundo a historiografia da literatura local, Luís da Câmara Cascudo é considerado "a ponte" entre Jorge Fernandes e Mário de Andrade.
Cascudo é quem introduziu as idéias sobre modernismo no Estado, afirmando na sua obra que Natal havia nascido no século vinte, tendo "dormido literalmente" nos séculos anteriores. Para o escritor e crítico literário Moacy Cirne – morando no Rio de Janeiro, e um freqüentador esporádico do Beco –, só há dois momentos importantes na Literatura Potiguar: o primeiro com o modernismo de Jorge Fernandes, em 1927 e; o outro, com o advento do “poema processo”, em 1967.
Nas paredes d'A Garçonière oswaldiana haviam quadros de Di Cavalcante, Tarcila do Amaral, Anita Malfatti, entre outros artistas modernistas. Entre os freqüentadores daquela confraria paulista, haviam as musas que freqüentavam as tertúlias literárias e uma delas era a normalista Maria de Lourdes Douzani Castro, que os modernistas chamavam de Daisy (ou Miss Ciclone), símbolo da mulher moderna, independente, jovem, bonita e talentosa.
Ao longo do tempo, o Beco da Lama tem sido palco para as mais diferentes beldades que vêm inspirando poetas, prosadores e recheando os textos de alguns contadores de sonhos. Gardênia Lúcia foi durante muitos carnavais a sereia dos mares metafóricos dos poetas bequianos.
Nas artes plásticas, a primeira exposição norte-riograndense, assumidamente modernista, foi realizada pelo artista plástico Newton Navarro, em 1948, numa sorveteria no centro da cidade, adjacências do Beco da Lama. Na contemporaneidade becodalamense, quadros de artistas plásticos potiguares do quilate talentoso de Valderedo Nunes, Assis Marinho, Franklin Serrão, Marcelus Bob, Léo Sodré, Gilson Nascimento, Fábio Eduardo, Marcelo Fernandes e outros, retratam, nas paredes do bar de Nazaré, o cotidiano do Grande Ponto e expressam as marcas da vanguarda cultural dos freqüentadores do Beco da Lama.
Enquanto os fragmentos literários produzidos durante o tempo d'A Garçonière pelos modernistas viraram um diário coletivo, anotações poéticas que se transformaram num livro registrando a inquietação daqueles intelectuais, a Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências – Samba – mantém uma lista de discussão na internet aonde recortes e colagens antropofágicas vão registrando a ebulição cultural vivida nesse recanto da Cidade Alta.
O pensamento dos freqüentadores da “Garçonière becodalamense” está estampado nas páginas de um blog na internet, “Alma do Beco”, cujas idéias são as mais profundas tentativas de revisão crítica e de reconstrução da cultura potiguar, que demandou a pesquisa e a abordagem poética de fontes do passado.
O Alma do Beco é a junção dos recortes literários produzidos através dos sonetos de Antoniel Campos, das glosas fesceninas de Laélio Ferreira, dos pés-quebrados de Chagas Lourenço, das imagens translúcidas de Hugo Macedo, das performances poéticas de Jakson Garrido, dos poemas de Eduardo Alexandre, Luiz Carlos Guimarães, Márcia Maia (poeta pernambucana), Nei Leandro de Castro, Yasmine Lemos, Barbinha dos Santos, Ferreira Itajubá, Newton Navarro, Cristina Tinoco, Élder Heronildes e tanto outros que passam pelo Beco.
Neste mundo virtual, também há espaço para as crônicas, ensaios, pesquisas, história do Estado, fotos de quase todos os confrades e confreiras dessa Garçonière potiguar.
Uma das mais interessantes descrições sobre o Beco da Lama é a epígrafe do blog na internet: “Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo”.
Com o lançamento do jornal impresso “O Beco”, os confrades ganham uma voz para registrar os fartos banquetes literários das almas virtuais deste mundo bequiano. Um instrumento capaz de abrir o verbo e gritar a essência da vanguarda do Beco da Lama: Poti or not Poti, that's Potengi!
Redinha, 400 Anos
A praia da Redinha comemora 400 anos com uma vasta história ocorrida em suas areias finas, onde o tempo generoso guarda todas as lendas de uma praia, habitada por pescadores, com suas casas de palha e seus humildes quintais.Redinha velha cansadaMuito orgulhosa de si,Deita o corpo embriagadaNo leito do Potengi.João Alfredo
A primeira referência existente, sobre o local onde é hoje a Redinha, figura no texto de sesmaria, concedida ao vigário do Rio Grande, Gaspar Gonçalves Rocha, por João Rodrigues Colaço, em 23 de junho de 1603.
Nesse recanto de mar aberto, os portugueses daquela época já conheciam o potencial pesqueiro da praia, que era o antigo porto de pescaria dos capitães-mores, os quais foram os primeiros colonizadores do lugar. Segundo o historiador Olavo de Medeiros Filho, existe um mapa intitulado “Perspectiva da Fortaleza dos Reis Magos”, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, localizado pelo historiador pernambucano Antônio Gonçalves de Melo, referindo-se a um “Porto de Pescaria”, com a presença de “rede”, no mesmo local onde hoje é a Praia da Redinha.
O topônimo da praia, segundo Câmara Cascudo, faz referência a uma vila em Pombal, na beira baixa do rio Tejo, em Portugal. “Distrito vila, a margem esquerda do município de Natal. Redinha-de-fora é um local arruado. A Redinha-de-dentro fica na foz do Rio Doce, desaguadouro da lagoa de Extremoz”, diz o mestre Cascudo, no livro Nomes da Terra.
A igreja de pedras pretas, construída pelos veranistas, em 1954, foi erguida de costas para o mar – sem má fé, mas imperdoável para os pescadores. E é por isso que os pescadores continuam freqüentando a capela de Nossa Senhora dos Navegantes, bem mais antiga, construída em 1922 – igrejinha menor, “branca, como uma capelinha panda ao vento”, para usar a expressão da Praieira de Othoniel Menezes.
Na Festa de Nossa Senhora dos Navegantes há duas procissões, com duas imagens: a da capelinha antiga é a imagem da Procissão Marítima, pelas águas do rio Potengi, entre a Boca da Barra e os confins da Base Naval; e a imagem da igreja preta que vai por terra, levada pelos veranistas ao longo das ruas e becos da vila.
O toque de fé e lirismo é o encontro das duas imagens, sob o aplauso fervoroso do povo simples de lá, inclusive nós que cantamos o Hino da Santa arrastando a esperança de que, não tendo faltado à sua procissão, seremos felizes o ano inteiro. Uma velha certeza, mistura de lendas e crenças populares.
De pedras do mar, também foi construído o Redinha Clube, em 1937, para o deleite festivo dos veranistas e pescadores em épocas de carnaval e durante a Festa do Caju. Durante décadas, o Redinha Clube teve uma importância relevante para a sociedade que freqüentava aquele recanto do Potengi. Hoje, está abandonado e esquecido, quase enterrado pela areia que avança para a vila.
A praia da Redinha sempre foi cortejada por intelectuais, boêmios e artistas, os quais viam em sua paisagem balneárias, entre mangues de rio e mar aberto, um lugar mágico para inspiração e descanso.
Quando visitava Natal, em 1929, o folclorista e escritor paulista Mario de Andrade, de passagem pela Redinha, encantado, disse no seu livro Aprendiz de Turista: “Oculta nessa monotonia de banda do mar, fica a Redinha, praia de verão, bairro em que ninguém sonha pela preguiça do pensamento que atravessa o rio com esse sol.”
O escritor Mario de Andrade foi convidado pelo mestre Câmara Cascudo a conhecer o folclore e a beleza do povo potiguar e ficou maravilhado com a travessia de barco, que saía do cais da rua Tavares de Lira até o trapiche, em frente ao Mercado da Redinha. Naquela época, a travessia pelo Rio Potengi era feita de barco a vela, só dependia do vento e dos braços fortes do pescador que comandava a embarcação.
É na Redinha que o cronista parnasiano, Vicente Serejo, adotou sua morada e, cuja prosa poética não esconde a paixão pela praia quando escreve: “Redinha boa, Redinha mansa, Redinha cheia de solidão como Pasárgada de Bandeira, lá todo mundo é Irene e ninguém precisa pedir licença”.
Os versos do poeta João Alfredo, morador antigo da vila, contempla os 400 anos de história da Redinha com acalantos à praia amada, como se o eterno canto de amor do poeta saísse feito uma prece ungida da alma, exprimindo todo sentimento e orgulho de ser potiguar.