O Recife antigo
O bairro do Recife, hoje chamado de Recife Antigo, teve origem no século XVI, numa faixa arenosa e estéril que ligava o porto natural ao istmo de Olinda, espremido entre o mar e os rios Capibaribe e Beberibe.
O povoado do Recife viria a ser consolidado menos de um século depois, abrigando umas poucas casas de pescadores e portuários e armazéns para estocar mercadorias comercializadas entre os engenhos e a metrópole.
Na época, o porto chegou a ser considerado como o maior das Américas, recebendo toda a sua carga através de batéis que singravam os rios e canais trazendo a produção dos engenhos de cana-de-açúcar.
Foi no Recife Antigo nque os holandeses se instalaram em 1637. A Rua do Bom Jesus, que testemunhou o esplendor do progresso urbano (1630-1654), foi o local escolhido pelos judeus para instalar a sua comunidade atuando no comércio ultramarino, sendo, por isso, chamada de Rua dos Judeus e Rua do Bode.
Em 1636, foi nela erguida a sinagoga Zur Israel (Pedra de Israel), a primeira das Américas, que se localizava nos prédios de nº 197 e 203, e que funcionou até 1654.
Após a saída de Maurício de Nassau do Recife, os judeus foram perseguidos e os padres da Congregação Santo Antônio herdaram os prédios. A rua mudou de nome, passando a ser chamada de Rua da Cruz e depois Rua do Bom Jesus, devido a capela construída nas imediações.
Após a expulsão dos holandeses, os portugueses continuaram a evolução urbana do bairro, permitindo a construção de várias obras como a Igreja e o Convento da Madre de Deus dos padres da Congregação de São Felipe Neri (1680-1707), da Igreja do Pilar (1160-1686) e do Forte do Matos (1684), assim como de diversas ruas.
Em 1710, ocorreu no local a Guerra dos Mascates.
Em 1881, foi construída a Estação Ferroviária do Brum, ligando o Recife à cidade do Limoeiro.
Em 1885, foram concluídos o Teatro Apolo e a Torre do Observatório.
No início do século XX, o bairro sofreu uma grande reforma, recebendo um traçado urbanístico tipicamente francês, influêrncia do arquiteto Louis Léger Vauthier, e perdendo importantes monumentos do início da colonização portuguesa e da passagem dos holandeses.
Entre 1907 e 1918, sofreu profundas intervenções com a construção do cais e armazéns do porto, do casario de arquitetura francesa e das avenidas Rio Branco e Marquês de Olinda. Por conta da reforma, foram demolidos o prédio da Associação Comercial e o edifício da Praticagem da Barra (1911).
Em 1912, foi demolida a Capela da Conceição dos Canoeiros, construída em 1851. Em 1913, foi demolido o Arco da Conceição, inaugurado em 1740, e a Matriz do Corpo Santo, edificada no século XVI. Em 1914, foi demolido o prédio da Companhia Pernambucana de Navegação.
O bairro tem 110 hectares, com 44 ruas, além dos becos e avenidas. É considerado hoje como Zona Especial de Preservação (ZEP), contando com 328 imóveis ao longo de sua extensão.
DELÍRIO AZUL
Entre os rios e o mar, Recife é um delírio azul. Dos sonhos dos homens, fez-se a cidade que sempre encantou poetas e imperadores. Dos sonhos dos homens e dos aluviões, matéria orgânica semeando o futuro sobre as águas.
Entre risos e bares, Recife é um transe etílico. Do porre dos poetas, fez-se a literatura nem sempre bem comportada que alicerçou a sua fama de reduto de bardos e bêbados. Em bandos ou solitários, a margear as águas nem sempre límpidas do mangue.
Sobre rios, pontes e overdrives, Recife é sinuosidade, é extravagância, superação de limites. Na sua concepção, em nada, porém, difere de todas as outras cidades do mundo. É equívoco, prisão, neuroses, contenção. Recria-se sempre sob a ótica do pragmatismo capitalista, a grana erguendo e destruindo coisas belas, sequelas.
Entre o passado e o futuro, Recife é o presente nem sempre bem compreendido. Onde estarão os botos do Capibaribe, espantados pelo vinhoto das suas usinas de açúcar e pelo murmúrio incessante das suas máquinas modernas? Recife perde-se na sua própria contemporaneidade. Que cidade é essa? Deitada para sempre no berço esplêndido da planície aluvional, a esperar com paciência o beijo libertador do cavaleiro do futuro.
Quantas vezes nos renderemos à luz do luar secular? Quantas paredes se ergueram entre ela e o seu solo úmido? Quantos séculos ainda esperaremos pelo que nunca existiu, pela essência para sempre perdida do passado, dos casarões malassombrados, do vento morno do verão que nunca nos açoitou as faces?
A gente precisa ver o luar!
Clóvis Campêlo