CIDADES BRASILEIRAS
Domingo, 6/1/2003

Quem olha não diz.
Tamanha belezura passando por tantas dificuldades. É que Deus te fez forte, morros de pedra, hidratada, azul no céu dos olhos, marejada, alegre mesmo na dor.
As maravilhosas também enfartam.
Quando tensas, pressionadas, sem recursos, baleadas pela indiferença.
Não são os tiros que matam, é a indiferença.
Há épocas na vida da gente em que vivemos sob condição suspensiva. Como o enforcado do Tarô, só nos resta olhar, ver tudo de cabeça pra baixo e sorrir. Nada acontece mas prepara-se muita coisa. Não vivemos num país feito para planejamentos. Reduzimos os gastos com energia elétrica, quase andamos em casa de lanterna no chapéu como os exploradores de cavernas e grutas, quase tomamos banho de roupa para economizar a máquina de lavá-las. Aí vem a conta de luz reduzida e nem há tempo de sorrir, aumentam-se as tarifas. Fazemos percursos a pé para economizar combustível e mal temos chance de comemorar, a gasolina sobe. Ficamos menos consumistas, passeamos menos, bebemos menos, fumamos menos, por vezes até paramos com tudo aproveitando o embalo pra ficar bem, ótimo, de saúde. Levaremos lanchinhos pro cinema um dia. Obrigatoriamente hippies, de vestidinho preto porque a gente pode repetir variando os adereços comprados no camelódromo Fashion Mall. As leis são passageiras como os amores. Passageiros como os idosos correndo seus passinhos pequenos atrás de um ônibus que foge deles numa espécie de jogo soturno. Os motoristas calculam a distância entre o velho e a porta de saída que, por ser a de entrada deles, permite esse avançar e parar do motorista perverso e ilegal. Ninguém dá a mínima pra isso. Zumbis, os pagantes nunca se manifestam. É diferente quando quem faz sinal é uma mulher jovem ou bonita. Pra ela o transporte coletivo pára na porta de casa, no meio da curva, da rua, pouco importa. São dramáticas as regras do ir e vir cotidiano. Organizar, planejar as nossas economias é como pegar ônibus, sendo idoso. A porta nunca está onde estamos. A chance que perdemos fica sempre a alguns passos adiante, há alguns minutos passados. Alienados, semi-adormecidos, cabeça pendendo de sono, sentados, em pé, seguimos nosso trajeto diário, quase cegos. Desviando o olhar dos meninos que fazem malabarismos nos sinais, dos ambulantes brilhantes com sua oratória vendendo balas, canetas e até livrinhos com tabuada, estes que entram pela porta de saída dos ônibus sem ar condicionado. O povo trabalha, mesmo contra disposição implícita de nossas autoridades. A gente segue, tentando manter o bom humor, como o louco do Tarô carrega seus pertences numa trouxinha nas costas, olhando para o céu, em direção ao abismo, seguido pelos latidos de um cão nervoso que nos acompanha e que, provavelmente por não ter contas a pagar, consegue perceber o perigo.

Glória Horta

Do blog:  "Facetas cariocas", com autorização da autora: http://www.facetascariocas.blogger.com.br/

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