Quem olha não diz.
Tamanha belezura passando por tantas dificuldades. É que Deus
te fez forte, morros de pedra, hidratada, azul no céu dos olhos,
marejada, alegre mesmo na dor.
As maravilhosas também enfartam.
Quando tensas, pressionadas, sem recursos, baleadas pela indiferença.
Não são os tiros que matam, é a indiferença.
Há épocas na vida da gente em que vivemos sob condição
suspensiva. Como o enforcado do Tarô, só nos resta olhar,
ver tudo de cabeça pra baixo e sorrir. Nada acontece mas prepara-se
muita coisa. Não vivemos num país feito para planejamentos.
Reduzimos os gastos com energia elétrica, quase andamos em casa
de lanterna no chapéu como os exploradores de cavernas e grutas,
quase tomamos banho de roupa para economizar a máquina de lavá-las.
Aí vem a conta de luz reduzida e nem há tempo de sorrir,
aumentam-se as tarifas. Fazemos percursos a pé para economizar combustível
e mal temos chance de comemorar, a gasolina sobe. Ficamos menos consumistas,
passeamos menos, bebemos menos, fumamos menos, por vezes até paramos
com tudo aproveitando o embalo pra ficar bem, ótimo, de saúde.
Levaremos lanchinhos pro cinema um dia. Obrigatoriamente hippies, de vestidinho
preto porque a gente pode repetir variando os adereços comprados
no camelódromo Fashion Mall. As leis são passageiras como
os amores. Passageiros como os idosos correndo seus passinhos pequenos
atrás de um ônibus que foge deles numa espécie de jogo
soturno. Os motoristas calculam a distância entre o velho e a porta
de saída que, por ser a de entrada deles, permite esse avançar
e parar do motorista perverso e ilegal. Ninguém dá a mínima
pra isso. Zumbis, os pagantes nunca se manifestam. É diferente quando
quem faz sinal é uma mulher jovem ou bonita. Pra ela o transporte
coletivo pára na porta de casa, no meio da curva, da rua, pouco
importa. São dramáticas as regras do ir e vir cotidiano.
Organizar, planejar as nossas economias é como pegar ônibus,
sendo idoso. A porta nunca está onde estamos. A chance que perdemos
fica sempre a alguns passos adiante, há alguns minutos passados.
Alienados, semi-adormecidos, cabeça pendendo de sono, sentados,
em pé, seguimos nosso trajeto diário, quase cegos. Desviando
o olhar dos meninos que fazem malabarismos nos sinais, dos ambulantes brilhantes
com sua oratória vendendo balas, canetas e até livrinhos
com tabuada, estes que entram pela porta de saída dos ônibus
sem ar condicionado. O povo trabalha, mesmo contra disposição
implícita de nossas autoridades. A gente segue, tentando manter
o bom humor, como o louco do Tarô carrega seus pertences numa trouxinha
nas costas, olhando para o céu, em direção ao abismo,
seguido pelos latidos de um cão nervoso que nos acompanha e que,
provavelmente por não ter contas a pagar, consegue perceber o perigo.
Glória Horta
Do blog: "Facetas cariocas", com autorização da autora: http://www.facetascariocas.blogger.com.br/