CIDADES BRASILEIRAS

RIO DE PAIXÃO

O Rio é meu escafandro. Tanto quanto você. Se me ausento por muito tempo, por melhor que seja a viagem, sinto-me mal, o ar me falta como se me afogasse. Se tivesse que morar em outra cidade – e longe de você – creio que não resistiria.

Lembro-me de quando criança mal acordar, as névoas do último sonho ainda se dissipando, e já sentir o doce cheiro salgado da maresia me dando bom dia, me convidando para um mergulho, o que eu fazia antes de qualquer coisa, antes mesmo do meu café saborear.

Papai recitava seu mantra diário: calma, menina, o mar não vai virar sertão ! Mamãe argumentava que eu devia me alimentar antes de nadar. Minha avó resmungava:sua carioca da bunda-choca ! Assim eu era carinhosamente chamada. Primeiro só por ela, depois – o apelido pegou – por toda a tradicional família mineira. Não entendia o significado, mas lia nas entrelinhas sua discreta censura, ou inveja, por ser a única a ter nascido aqui, a única a pronunciar deiz, faiz, meis.

Desde cedo percebia essa condição que marcava diferença entre mim e os primos que me copiavam em tudo, não só o sotaque. O famoso jeitinho brasileiro aqui exacerbado. A displicência, que se reflete na informalidade no vestir: a dobradinha jeans & camiseta, pau pra toda obra: faculdade, trabalho, restaurante ou missa de sétimo dia. A alegria contagiante de quem é morador dessa academia a céu aberto, onde se pratica footing diariamente, nas quatro estações. A disponibilidade para dar informações até quando não as conheço, me informando junto para fornecê-las.

É, se cresci num Rio tranqüilo dos bondes, lotações, ônibus elétricos e pouco trânsito, hoje o feérico dos engarrafamentos a qualquer hora, meninos de rua no sinal, camelôs em demasia, não me é estranho. Nem roubou essa simpatia que nos caracteriza e que nos rendeu, recentemente, numa disputa com outras vinte e três cidades, o título do povo mais gentil e prestativo do mundo.

Só sei que deixava todos falando, e num piscar de olhos fugia, descalça mesmo, em jejum. Corria para a praia. Ia enfiando com satisfação meus pés naquela areia fofa, como se a cada manhã me enraizasse um pouco mais. Primeiro ainda morna do calor armazenado do dia anterior, diferente daquela fervente que me fazia correr para não queimar as solas dos pés, quando às vezes voltava ao meio-dia. Depois, fria e úmida bem próxima ao mar. E finalmente gelada, já debaixo d' água.

Observava, com cuidado, o estranho balé das águas-vivas. Pegava com as mãos em concha peixinhos coloridos dos muitos cardumes que por ali passavam. Pisava com cuidado para não me cortar, cavando delicadamente com o dedão os furinhos que os tatuís deixavam, revelando seus esconderijos . Sonhava algum tesouro encontrar, além de jóias de banhistas descuidados. Aí então, junto com os mergulhões que, diariamente, sobrevoando a superfície, me faziam companhia, afundava, fosse qual fosse a temperatura. Brincava de treinar o fôlego, permanecendo cada vez mais tempo submersa. Umas furadas de ondas que arrebentavam ainda mansinhas a essa hora da manhã, umas braçadas, e pronto: batizada para começar o dia. Renascida. Purificada de toda e qualquer culpa ou pecado. Pronta para o que desse e viesse. Tanques cheios. Revigorada. Assim é quando estou com você. Inalo suas palavras e beijos como se oxigênio fossem. Porque me renovam, alimentam minhas células, promovem trocas vitais. E rio, meu Deus, como rio.

Foi numa dessas alvoradas que conheci você, décadas mais tarde. Banhava-me tranqüilamente, num ritual estabelecido e cumprido religiosamente por anos a fio, perdida em meus pensamentos, em silêncio, verdadeira comunhão com a natureza, quando você, disparado feito uma bala, mergulhou ao meu lado, respingando água pra todo canto. Logo se desculpou, gracejando alguma coisa, se assumindo como novo no pedaço, ainda não tendo aprendido como se comportar ou controlar as emoções diante desse marzão besta. Achei muita graça na sua espontaneidade, respondi no mesmo tom, e você se encantou com o meu bom humor matutino e minha receptividade.

Ao contrário do estereótipo segundo o qual mineiros são reservados, quebrou o gelo e me fez um verdadeiro interrogatório. Falamos, falamos e falamos, como se amigos de longa data fôssemos. Apontou o hotel defronte, onde estava hospedado, e perguntou – em meio a um largo sorriso – se eu não queria ser sua guia turística no Rio. Minha resposta foi outro, bem prolongado, enquanto me enrolava na canga e dava ciao sob seus olhares também risonhos. O papo estava ótimo, mas outro prazer me aguardava: meu micro e muito trabalho.

Muito trabalho também, de sua parte, impediu que nos reencontrássemos durante vários dias, atrasando assim o início de um duplo desabrochar de amor: por você e por minha cidade que sabia maravilhosa, mas não tanto assim, só fui conhecê-la realmente quando a apresentei a você. Quando começamos nossos tours, meu entusiasmo era tamanho, tamanha a vibração, que parecia que a turista era eu.

Amo de paixão, séculos, o Rio e você. E não os trocaria por nada nesse mundo, até porque, sei, não resistiria.

Ana Guimarães

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