São
Paulo, eu não sei, me dá assim umas cólicas mentais,
me joga na Rua da Aurora, me lambe, cachorra, no Largo do Arouche, me diz
cadela o néon da noite. Não, São Paulo?, eu não
sei, eu não sei mais.
Vou por Belas Vistas e Paraísos, toco pro Bixiga, remordo o Jabaquara
como quem acabou de selar que será, certamente será, em cianureto,
a morte carbono do último daqueles dez milhões e mais alguns
que um dia as tevês alardearam. É que só de noite a
poluição baixa - no prato dos nordestinos.
Baianos e Novos Baianos, não esqueço, decifraram melhor esta
matuta-nova-iorquina Paulicéia, ao som merencório de sua
garoa — afinando a arte equilibrista, plangendo guitarras, vencendo festivais
e inventando a moda do Bar do Jeca e a moda do Bar Brasil — módulos
de poesia que até hoje assoviamos. Não esquina mais esquina
que a esquina em que cruzam Ipiranga e São João.
São Paulo, eu não sei, não cabe sequer no bolso grande
do sobretudo. Vou de vulto, por seus ventos, porradas, pauleiras. Assumpção
e Barnabé, Pirapora. Aids no ar que arde a vista desacostumada.
Peixeira nos balcões, pau-de-arara bêbado e a Rota, apontando-nos
fuzis-de-elite contra a cabeça. Meu Deus, meu Deus, há mais
botequins na Alameda Gléte do que em toda a Rua das Flores! Um coreano
espião me persegue na Liberdade. Me juram que é ele,
os olhos dois riscos de luz.
São Paulo, fico na dúvida, estremeço — não
consigo saber se realmente vivos, ou pura miragem, estes que enchem o Ibirapuera,
manhãs de límpido azul. Aí que dá uma saudade
do que não foi e aquela lenta desesperança de tudo o que
em vão poderia ter sido. Não mordo a avenca que esbarra na
minha cabeça, por pura timidez, e nem sou dado a semelhantes descomposturas
públicas. Lá de seus soldados, os cavalos me cavalgam indiferentes.
São Paulo em pedra — reino caboclo, cimento e vidro. Há gente
em seus ocos e vazios, em seus oásis. Provinciano me sento no banco
do Parque e assisto à procissão dos mortos-de-domingo.
Na Barra Funda há a rua Lopes Chaves, 546, outrora 108. De lá
saíam cartas, artigos, romances, poemas, postais com que Mário
de Andrade, o seu mais perfeito personagem, todo doído, Sampa, cutucava
o Brasil. De todos os lados, de fumaça e incongruência, São
Paulo, eu não sei me cochicha ao pé-do-ouvido uma rima, uma
frase, transpaulinas radicalidades do gênio Oswald. Mas a rua Lopes
Chaves, 546, outrora 108, foi há muito tempo. Brasis ainda por descobrir
ou por ser desinventados.
João Miramar vende uns óculos, legítimos de França.
Os óculos não têm mais aro. São uns óculos
eternos, mais eternos que Anatole France.
São Paulo, acabo confuso, embaralho, zumbo pelo metrô, salto
na Sé e saio correndo pra flagrar o primeiro suicídio da
noite em queda livre no Viaduto do Chá. Sempre chego atrasado —
o trânsito, a hora do rush, essas coisas. Depois, olho nos andares
mais altos do Edifício Itália — o dragão urbano vai
longe, arrojado, ainda que muitíssimo aquém do céu.
Sampa, eu não sei, fico pensando, parece que estou em casa.
Wilson Bueno